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DO BLOG CONVERSA DE ALPENDRE

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Tenho acompanhado nos últimos dias as postagens do blog CONVERSA DE ALPENDRE, focado na tradição, na cultura, na história e notícias do SERTÃO CENTRAL do Ceará, tendo por base os municípios de Canindé, Madalena, Quixeramobim, Quixadá e adjacências. As matérias são interessantes e trazem referências literárias (caso da postagem de uma bela crônica de Rachel de Queiroz).  Defensores que sempre fomos da CULTURA POPULAR e das coisas do sertão, resolvemos divulgar uma das matérias postadas no referido blog, para a apreciação dos leitores do blog ACORDA CORDEL. Confiram.

A matéria a seguir foi extraída do blog CONVERSA DE ALPENDRE, de Júlio Vieira. Confiram...


Foram distribuídas gratuitamente mudas de plantas frutíferas e nativas


MADALENA REALIZA I FEIRA DA AGRICULTURA FAMILIAR

Voltada para promover geração de renda para o pequeno produtor, e contribuir com a qualidade de vida da população, através do fomento à produção e consumo de alimentos orgânicos no município, a Prefeitura de Madalena realizou, no dia 02 de maio próximo passado, a I Feira da Agricultura Familiar. A prefeita Sonia Costa mostrou-se otimista com os resultados obtidos na primeira edição do evento e promete empenhar-se para que a feira continue se realizando regularmente. “Essa primeira versão da Feira da Agricultura Familiar de Madalena foi meio na base do improviso. Tivemos 15 barracas padronizadas, emprestadas pela Prefeitura de Boa Viagem, porém contamos com uma boa participação dos pequenos e médios agricultores e produtores de Madalena, além de uma boa diversidade de produtos. Nosso objetivo é adquirir um kit de barracas para o nosso município e continuar realizando a Feira regularmente” – disse a prefeita.
Carlos Flaubert Patrício é outro que se mostra satisfeito com a iniciativa. “A feira serve para as famílias venderem seus produtos e ainda evitarem a figura do atravessador. Por ter sido a primeira precisa de alguns ajustes, mas o objetivo foi alcançado. Pretendemos torná-la semanal.”
Milho verde, feijão, jerimum, pimentão, mel de abelha, hortaliças foram alguns dos produtos expostos nas barracas. Houve distribuição gratuita de mudas de plantas. Também houve a comercialização de pequenos animais: aves, ovinos e caprinos. Os participantes ficaram muito felizes com o resultado, porque a feira atraiu bastante compradores.
Na opinião do Diretor de Meio-Ambiente do Município, professor Renê Sousa, trata-se de uma ação de grande importância para o município, pois irá trazer benefícios aos pequenos produtores rurais. “Através da feira podemos mostrar para toda região uma grande variedade de produtos produzidos e criados aqui no município de Madalena (frutas, legumes, hortaliças, derivados de leite, ovos e galinhas caipira, entre outros), bem como irá trazer uma renda extra ao homem do campo.”
Ele avalia ainda que essa feira aos poucos irá se tornar uma tradição, beneficiando também as pessoas que irão comprar, pois ali só tem produtos livres de agrotóxicos totalmente naturais.
“Como filho de agricultor, nascido e criado na roça, vejo que é de suma importância a criação dessa feira, pois estará dando oportunidade para aqueles que trabalham e vivem no campo levar até a cidade as riquezas que são produzidas com muito suor e dedicação, fazendo com que os mesmos tenham oportunidade de expor e vender sua produção sem que precise de atravessador. Madalena está de parabéns por esta ação o qual foi realizada pela Secretaria de Agricultura e apoio das demais secretarias Municipais, com total Apoio de nossa Prefeita Sônia Costa que abraçou essa ideia e colocamos em prática” concluiu Renê Sousa.

QUER SABER MAIS? 

Leia a matéria completa no blog: 
http://alpendresertao.blogspot.com.br/2018/05/uma-boa-noticia.html



Leandro no Itaú Cultural

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LEANDRO GOMES DE BARROS
Biografia

Leandro Gomes da Nóbrega (Pombal, PB, 1865 - Recife, PE, 1918). Cordelista. Nasce em Pombal, Paraíba, na fazenda Melancia, e é sobrinho materno do padre Vicente Xavier de Farias (1822- 1907), que ajuda a criá-lo. Sua relação com o tio, entretanto, não é fácil, o que faz com que fuja de casa com 11 anos, por causa dos maus-tratos que sofre. Muda seu sobrenome de Nóbrega para Barros depois de ter sido prejudicado pelo padre na partilha dos bens da família. Na infância, mora em Teixeira, Paraíba, onde convive com diversos violeiros, até que, em 1880, a família se muda para Vitória de Santo Antão, Pernambuco. Em 1889, começa a publicar seus versos, sendo um dos pioneiros da literatura de cordel. Produzindo de maneira intensa e independente, adquire, em 1906, uma pequena gráfica para imprimir e distribuir os próprios trabalhos. Com sua morte, o genro e escritor Pedro Batista (1890-1938) obtém os direitos de publicação de sua obra. Porém, três anos depois, a viúva de Barros, Venustiniana Eulália de Souza, vende esses direitos para o editor e poeta João Martins de Ataíde (1880-?), que passa a publicar os textos sem creditar-lhe a autoria e fazendo alterações nos originais, o que torna difícil compilação da obra de Barros, estimada em mais de 600 títulos.

FONTE: Itau Cultural
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa5873/leandro-gomes-de-barros

SACI X HALLOWEN

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(Imagem: reprodução/ Facebook/ Sociedade dos Observadores de Saci)

31 de outubro (31/10):
Dia do Saci ou Dia das Bruxas?
Entenda a história
As duas comemorações são no mesmo dia e não anulam uma a outra. O Dia do Saci prega a perpetuação da cultura e do folclore brasileiro

O Dia das Bruxas, Halloween em inglês, que surgiu nos Estados Unidos, ganhou o mundo e é uma das datas comemorativas mais lucrativas e comerciais sob o pretexto de "doces e travessuras" e pela compra de fantasias e adereços. No Brasil, a abrangência não é diferente, mas há quem defenda que o dia seja comemorado sob outra ótica e destaque outro protagonista: o Saci Pererê.

Pensando em homenagear e perpetuar a cultura do País e ir de encontro ao consumismo e comercialização que acontecem no Dia das Bruxas, estudiosos e entusiastas do foclore brasileiro criaram o Dia do Saci e instituiram a celebração para o mesmo dia do Halloween. A ideia surgiu da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci), criada em 2003 em São Luiz do Paraitinga, interior de São Paulo, para estudar não só o saci, como outros mitos brasileiros.

Flávio Paiva, colunista de cultura do O POVO e membro da Sosaci, explica a escolha da data. "A ideia que fosse no mesmo dia foi pra criar um conflito e ir de encontro com a data americana. Não é uma festa 'do contra', é uma festa para dar alternativa a quem gosta desse tipo de manifestação e quer celebrar a brasilidade", aponta.

Leia matéria completa na edição de hoje de O POVO: https://www.opovo.com.br/noticias/curiosidades/2018/10/31-de-outubro-31-10-dia-do-saci-ou-dia-das-bruxas.html

LEIA TAMBÉM: http://maladeromances.blogspot.com/2016/10/saci-perere-x-hallowen.html



Estação do Cordel:

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(Fotografias do acervo de Nando Poeta)

O CORDEL NO CENTRO DE NATAL




A Estação do Cordel, ANLIC (Associação Norte-rio-grandense de Literatura de Cordel), com o apoio da SPVA (Sociedade dos Poetas Vivos) começaram as comemorações alusivas ao dia 19, dia do cordelista, data do nascimento de Leandro Gomes de Barros, no III Círculo Natalense do Cordel, realizado nos dias 15,16 e 17 de novembro na cidade de Natal.
O III Círculo Natalense do Cordel foi a culminância do ano Leandrino, já que em março deste ano, celebramos os 100 anos de seu encantamento e iniciamos durante o ano inteiro atividades que lembraria a obra e vida de Leandro Gomes de Barros.
Aproveitamos o evento para celebrar a importância dos 120 anos de Luis da Câmara Cascudo, os 90 anos de encantamento de Fabião das Queimadas, o centenário de Zé Saldanha e os 90 anos da passagem de Mario de Andrade por Natal, todos eles impulsionadores da nossa arte e cultura.
A congregação de poetas vindo de várias partes do país e do Rio Grande do Norte, foi o coroamento. Durante os três dias, realizamos 8 palestras e dois lançamentos que se transformaram em grandes debates, com uma participação envolvente de todos os presentes.
Nas mesas estiveram os poetas e pesquisadores: Irani Medeiros/RN, Gustavo Luz/RN, Jefferson Campos/RN, Aderaldo Luciano/RJ, Varneci Nascimento/SP, Tonha Mota/RN, Marco Haurélio/SP, Gutemberg Costa/RN, Daliana Cascudo/RN, Marciano Medeiros/RN, Kydelmir Dantas/PB, Carlos Alberto/RN, Nando Poeta/RN, Eduardo Santa Rosa, Zeca Pereira/BA,Manoel Cavalcante/RN, Geralda Efigênia/RN, Maria Alice Amorim/PE , Izabel Nascimento/SE, Cláudia Borges/RN, Ozany Gomes/RN, Marconi Branco/RN, Jussiara Soares/RN,  Sírlia Lima/RN  e Tereza Custódio/RN, dentre outros.
No evento foi realizada uma Mesa de Glosa, sob a coordenação de Moura Galvão, que reuniram os poetas: Jadson Lima/RN, Marciano Medeiros/RN, Felipe Pereira/RN e Marcos Teixeira/RN, que chamaram a concentração de todos os presentes, que atentos acompanharam a criação poética (motes) e a desenvoltura dos poetas na mesa.
A Presidente Tonha Mota da ANLIC (Associação Norte-rio-grandense de Literatura de Cordel) com seus confrades presentes conduziu o Necrológio dos confrades (Antonio Sobrinho,Domingo Tomás,Luiz Campos, Aldivam Honorato e Manoel Justino) da ANLIC-RN, foi um momento de reconhecimento aos poetas da Academia que se encantaram.


Kydelmir Dantas, Gustavo Luz, Paulo Varela e Nando Poeta

Durante três noites, muitos poetas e músicos passaram pelo palco da praça, abrilhantando cada noite do Círculo, entre eles: Jadson Lima/RN, Rodrigão/RN, Lino Sapo/RN, Claudson Faustino/RN, Léo Medeiros, Cláudia Borges/RN, Filipe Borges/RN, Tonha Mota/RN, Manoel Cavalcante/RN, Antonio Francisco/RN, Paulo Varela/RN, José Acaci/RN, Ed Carlos/RN, Carlinhos Zens e Antonia. A condução do Sarau ficou com a coordenação da jornalista Idyane França.
Os Poetas Mirins entraram em cena, encantando todos os presentes. A caravana de poetas mirins desembarcaram na praça, iluminando uma das noites mais bela do III Círculo Natalense do Cordel. Estiveram, Filipe Borges-São José do Mipibu/RN, Davi Lima-Bom Jesus/RN, Tiago Camilo-Currais Novos/RN, Moises-Mossoró-RN e Clara Bezerra-Carnaúbas dos Dantas/RN. Foi um show a parte, com o estrelato mirim interagindo com o poeta Antonio Francisco, que foi recebido pela meninada com grande carinho.
Vários grupos musicais marcaram sua presença, como: Zé Martins e Banda Fibra de Coco, Trio de Forró Du Sete, Fuxico de Feira e o Bando de Fabião, com Tonha Mota e seu Forró pé de serra.
O III Círculo Natalense do Cordel ganhou as ruas de Natal, na concentração na Praça Padre João Maria, o João Redondo abriu o caminho para o Boi Misterioso desfilar pelas ruas da Cidade Alta, animando os brincantes e chamando a atenção dos populares.
Durante todo evento, tivemos a visitação de escolas, com os estudantes e profissionais vivenciando os espaços do III Círculo. A escola Coronel Miguel Teixeira do município de Jardim de Angicos abriu o evento ainda no feriado de 15 de novembro.
Foram três dias intensos de alegria, que contou com o apoio de inúmeros colaboradores que ajudam a edificar no coração do centro histórico da Cidade Alta do Natal, um espaço de arte independente, que tem aglutinado os amantes da arte, populares e turistas que aproveitaram o feriadão e transbordaram na arte e cultura de nossa cidade.
Todos os que participaram do evento, dizem por uma só boca, VIDA LONGA AO CÍRCULO NATALENSE DO CORDEL, e que venha o de 2019.

ZÉ LIMEIRIANDO

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Uns sessenta e tantos anos antes de Orlando Tejo nos apresentar ZÉ LIMEIRA, o Poeta do Absurdo, o velho LEANDRO GOMES DE BARROS andou praticando umas estrofes "limeirianas", incluindo o famoso farmacêutico ALPHEU RAPOSO, de Recife. O poema é da primeira década do século passado. Confiram:

O ANTIGO E O MODERNO

Leandro Gomes de Barros


Quando o velho Santo Jó
Viu-se doente e leproso
No Recife Alfeu Raposo
Mandou-lhe uma fricção,
A mulher dele mandou
Pedir ao Dr. Tomé
Na farmácia São José
O Elixir da Salvação.


Nas bodas de Canaã
Que Cristo fez da água vinho
A Lanceta de Agostinho
Exagerou sem limite
Soares Raposo deu
Carne para lombo e bife
E o Jornal do Recife
Fez os cartões de convite.


São Pedro era pescador
Antes de seguir Jesus
Quando o Dr. Santa Cruz
Tomou conta de Monteiro
Nero Imperador Romano
Mandou um seu paladino
Chamar Antônio Silvino
Para ser seu cangaceiro.

Leandro Gomes de Barros


O CICLO DAS PELEJAS NO CORDEL

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PELEJA DE BERNARDO NOGUEIRA 
COM PRETO LIMÃO

Quase todas as "PELEJAS" na literatura de cordel são imaginárias, criação individual de determinado poeta que usa o nome de dois cantadores famosos para engendrar a contenda. Algumas são tidas como verdadeiras, caso de INÁCIO DA CAATINGUEIRA E ROMANO DA MÃE D'ÁGUA ou mesma a de CEGO ADERALDO COM ZÉ PRETINHO DO TUCUM. Esta peleja de Bernardo Nogueira com Preto Limão é atribuída a João Martins de Athayde, poeta-editor paraibano que adorava esse gênero:

TRECHOS

PELEJA DE BERNARDO NOGUEIRA COM PRETO LIMÃO
Autor: João Martins de Athayde

Em Natal já teve um negro
Chamado Preto Limão
Representador de talento
Poeta de profissão
Em toda parte cantava
Chamando o povo atenção

Esse tal Preto Limão
Era um negro inteligente
Em toda parte que chega
Já dizia abertamente
Que nunca achou cantador
Que lhe desse no repente

Nogueira sabendo disto
Prestava pouca atenção
Dizendo: – eu nunca pensei
Brigar com Preto Limão
Sendo assim da raça dele
Eu não deixo nem pagão


O encontro destes homens
Causou admiração
Que abalou o povo em roda
Daquela povoação
Pra ver Bernardo Nogueira
Brigar com Preto Limão


Eu sou Bernardo Nogueira
Santificado batismo
Força de água corrente
Do tempo do Sacratíssimo
Quando eu queimo as alpercatas
Pareço um magnetismo

  
Me chamam Preto Limão
Sou turuna no reconco
Quebro jucá pelo meio
Baraúna pelo tronco
Cantador como Nogueira
Tudo obedece meu ronco

(...)


BN - Cantador com Nogueira não peleja
Sendo assim como o tal Preto Limão
Só se for pra tomar minha lição
Ele engole calado e não bodeja
Vai comendo da mesa o que sobeja
Precisa me tratar com muito agrado
No instante fazer o meu mandado
É de pressa, é ligeiro, é sem demora
Qu’eu não gosto de moleque que se escora
Pois assim é qu’eu o quero por criado.

PL - Vale a pena não seres cantador
É melhor trabalhares alugado
Vai cumprir por aí teu negro fado
Vai viver sob o ferro dum feitor
Da senzala já és um morador
Teu trabalho é lá na bagaceira
O que ganhas não dá pra tua feira
Renego tua sorte tão mesquinha
Que te sujeitas às amas da cozinha
E te ofereces pra delas ser chaleira.

BN - Este homem já vive desvalido
É descrente de Deus e da Igreja
Lúcifer o teu nome já festeja
Tu só podes viver é sucumbido
Sois tão ruim que só andas escondido
Para Deus nunca mais serás fiel
Tua raça é descendente de Lusbel
Que do Céu já perdeste a preferência
Farás tua eterna convivência
Lá embaixo dos pés de São Miguel

PL - Tu pareces que vinhas na carreira
Sempre olhando pra frente e para trás
Como quem chega assim veloz de mais
Eu vi bem quatro paus de macaxeira
Uma jaca partida e outra inteira
Também vi dois balaios de algodão
Creio que tu já foste um ladrão
Com o peso fazia andar sereno
Às dez horas da noite, mais ou menos

Encontrei-te com esta arrumação.





O POETA-EDITOR JOÃO MARTINS DE ATHAYDE

Naturalidade: Ingá do Bacamarte – PB
Nascimento: 23 de junho de 1880 / Falecimento: 7 de agosto de 1959
Atividades artístico-culturais: Poeta popular, escritor e editor
João Martins de Athayde nasceu em Cachoeira de Cebolas, povoado de Ingá do Bacamarte – PB. Não frequentou a escola, aprendeu a ler e escrever sozinho. Segundo seu próprio depoimento, aos oito anos, assistindo pela primeira vez a um desafio de Pedra Azul, um famoso cantador da região, começou a se interessar e fazer poesia popular.
Migrou para Recife, vizinho Estado de Pernambuco. Publicou o seu primeiro folheto em 1908, impresso na Tipografia Moderna. Um preto e um branco apurando qualidades. Embora seja da primeira geração dos poetas de cordel, não pertenceu ao grupo que frequentava a Popular Editora, de Francisco das Chagas Batista.
Em 1909, conseguiu montar uma pequena tipografia na Rua do Rangel, no  bairro de São José, tornando-se um dos maiores editores de folhetos de cordel do País. Da sua oficina saíram, durante mais de quarenta anos, estórias fantásticas, recriações de estórias famosas, crítica de costumes, notícias de acontecimentos da época que divertiam, informavam e educavam o homem da cidade grande e das localidades mais distantes do Nordeste brasileiro.
João Martins de Athayde contribuiu grandemente para o desenvolvimento da arte e da comercialização do folheto popular no Recife. Foi o desbravador da indústria do folheto de cordel no País. Industrializando e comercializando sua produção e a de outros artistas, criou uma grande rede de atividades lucrativas no Nordeste, que se espalhou para outras regiões brasileiras, possibilitando a diversos poetas populares se dedicarem exclusivamente à poesia como atividade profissional.
Foi o responsável por profundas mudanças na edição de folhetos de cordel, no que se refere à relação entre os artistas e a tipografia, criando, inclusive, contratos de edição com o pagamento de direitos de propriedade intelectual, o uso de subtítulos e preâmbulos em prosa e a sujeição da criação poética ao espaço disponível, fixando-se o padrão dos folhetos pelo número de páginas em múltiplos de quatro.  A apresentação gráfica dos folhetos deu-se devido às ideias de João Martins de Atayde.
Sua admiração por Leandro Gomes de Barros não era correspondida. Ao contrário: por duas vezes foi destratado (na resposta ao folheto Discussão de Leandro Gomes de Barros com João Athayde e na contestação que recebeu o seu poema O marco do meio mundo). Para Ruth Terra, as respostas de Leandro, apesar de serem contraditas, revelam o seu reconhecimento da importância de Athayde. Em 1918, Athayde escreveu A pranteada morte do grande poeta Leandro Gomes de Barros.
Em 1921, adquiriu os direitos de publicação de toda a obra de Leandro e iniciou a republicação, inicialmente, se indicando como editor e, posteriormente, retirando a informação da autoria de Leandro.
Foi aclamado na década de 1940 como o maior poeta popular do Nordeste.
João Martins de Athayde, no ano de 1949, após haver passado por um acidente vascular cerebral, se afastou da atividade de editor, vendeu a sua tipografia para José Bernardo da Silva, repassando-lhe os estoques e os direitos de edição sobre tudo o que publicou. O cordelista faleceu 10 anos depois em Limoeiro – PE, no ano de 1959.

Folhetos atribuídos a João Martins de Athayde: A Bela Adormecida no Bosque; A Garça Encantada; A Menina Perdida; A Moça Que Foi Enterrada Viva; A Paixão de Madalena; A Pérola Sagrada; A Sorte de uma Meretriz; História Da Moça Que Foi Enterrada Viva; História Da Princesa Eliza História de Joãozinho E Mariquinha; História de José do Egito; História de Natanael e Cecília; História de Roberto do Diabo; História do Valente Vilela; Mabel Ou Lágrimas De Mãe – Dois Volumes; O Balão do Destino e a Menina da Ilha (2 Volumes); O Estudante que se Vendeu ao Diabo; O Marco do Meio Mundo; O Namoro de um cego com uma Melindrosa da Atualidade; O Prisioneiro do Castelo da Rocha Negra; O Retirante; O Segredo da Princesa; Peleja de Antônio Machado com Manoel Gavião; Peleja de Bernardo Nogueira Com Preto Limão; Peleja de Laurindo Gato com Marcolino Cobra Verde; Peleja De Ventania Com Pedra Azul; Raquel e a Fera Encantada; Romance de José de Sousa Leão do Amazonas, Romeu e Julieta e Um Passeio no Escuro.

Pesquisa de José Paulo Ribeiro (Guarabira-PB)

PATATIVA DENUNCIA A FOME E O DESCASO

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  1. Patativa, foto de Tiago Santana


A  MORTE  DE  NANÃ

Patativa do Assaré

Eu vou contá uma históra
Que eu não sei como comece,
Pruquê meu coração chora,
A dô do meu peito cresce,
Omenta o meu sofrimento
E fico uvindo o lamento
De minha arma dilurida,
Pois é bem triste a sentença
De quem perdeu na isistença
O que mais amou na vida.

Já tou véio, acabrunhado,
Mas inriba deste chão,
Fui o mais afurtunado
De todos fios de Adão.
Dentro da minha pobreza,
Eu tinha grande riqueza:
Era uma quirida fia,
Porém morreu muito nova.
Foi sacudida na cova
Com seis ano e doze dia.

Morreu na sua inocença
Aquele anjo incantadô,
Que foi na sua isistença,
A cura da minha dô
E a vida do meu vivê.
Eu bejava, com prazê,
Todo dia, demenhã,
Sua face pura e bela.
Era Ana o nome dela,
Mas, eu chamava Nanã.

Nanã tinha mais primô
De que as mais bonita jóia,
Mais linda do que as fulô
De um tá de Jardim de Tróia
Que fala o dotô Conrado.
Seu cabelo cachiado,
Preto da cô de viludo.
Nanã era meu tesôro,
Meu diamante, meu ôro,
Meu anjo, meu céu, meu tudo.



Pelo terrêro corria,
Sempre sirrindo e cantando,
Era lutrida e sadia,
Pois, mesmo se alimentando
Com fejão, mio e farinha,
Era gorda, bem gordinha
Minha querida Nanã,
Tão gorda que reluzia.
O seu corpo parecia
Uma banana-maçã.

Todo dia, todo dia,
Quando eu vortava da roça,
Na mais compreta alegria,
Dentro da minha paioça
Minha Nanã eu achava.
Por isso, eu não invejava
Riqueza nem posição
Dos grande deste país,
Pois eu era o mais feliz
De todos fio de Adão.

Mas, neste mundo de Cristo,
Pobre não pode gozá.
Eu, quando me lembro disto,
Dá vontade de chorá.
Quando há seca no sertão,
Ao pobre farta fejão,
Farinha, mio e arrôis.
Foi isso o que aconteceu:
A minha fia morreu,
Na seca de trinta e dois.

Vendo que não tinha inverno,
O meu patrão, um tirano,
Sem temê Deus nem o inferno,
Me dexou no desengano,
Sem nada mais me arranjá.
Teve que se alimentá
Minha querida Nanã,
No mais penoso matrato,
Comendo caça do mato
E goma de mucunã. 

E com as braba comida,
Aquela pobre inocente
Foi mudando a sua vida,
Foi ficando deferente.
Não sirria nem brincava,
Bem pôco se alimentava
E inquanto a sua gordura
No corpo diminuía,
No meu coração crescia
A minha grande tortura.

Quando ela via o angú, 
Todo dia demenhã,
Ou mesmo o rôxo bejú
Da goma da mucunã,  
Sem a comida querê,  
Oiava pro dicumê,   
Depois oiava pra mim
E o meu coração doía,
Quando Nanã me dizia:
Papai, ô comida ruim!



Foto: http://www.naturezabela.com.br

Se passava o dia intêro
E a coitada não comia,
Não brincava no terrêro
Nem cantava de alegria,
Pois a farta de alimento
Acaba o contentamento,
Tudo destrói e consome.
Não saía da tipóia
A minha adorada jóia,
Infraquecida de fome.

Daqueles óio tão lindo
Eu via a luz se apagando
E tudo diminuindo.
Quando eu tava reparando
Os oinho da criança,
Vinha na minha lembrança
Um candiêro vazio
Com uma tochinha acesa
Representando a tristeza
Bem na ponta do pavio.

E, numa noite de agosto,
Noite escura e sem luá, 
Eu vi crescê meu desgosto,
Eu vi crescê meu pená.   
Naquela noite, a criança
Se achava sem esperança
E quando vêi o rompê
Da linda e risonha orora,
Fartava bem pôcas hora
Pra minha Nanã morrê.  

Por ali ninguém chegou,
Ninguém reparou nem viu
Aquela cena de horrô   
Que o rico nunca assistiu,
Só eu e minha muié,   
Que ainda cheia de fé
Rezava pro Pai Eterno,
Dando suspiro maguado
Com o seu rosto moiado
Das água do amô materno.

E, enquanto nós assistia
A morte da pequenina,
Na menhã daquele dia,
Veio um bando de campina,
De canaro e sabiá
E começaro a cantá
Um hino santificado,
Na copa de um cajuêro
Que havia bem no terrêro   
Do meu rancho esburacado.

Aqueles passo cantava,
Em lovô da despedida,
Vendo que Nanã dexava
As misera desta vida,
Pois não havia ricurso,
Já tava fugindo os purso,
Naquele estado misquinho,
Ia apressando o cansaço,
Seguido pelo compasso
Da musga dos passarinho.

Na sua pequena boca
Eu via os laibo tremendo
E, naquela afrição loca,
Ela também conhecendo
Que a vida tava no fim,
Foi regalando pra mim
Os tristes oinho seu,
Fez um esforço ai, ai, ai,
E disse: “abença, papai!”
Fechô os óio e morreu.

Enquanto finalizava
Seu momento derradêro,
Lá fora os passo cantava,
Na copa do cajuêro.
Em vez de gemido e choro,
As ave cantava em coro.
Era o bendito prefeito
Da morte de meu anjinho.
Nunca mais os passarinho
Cantaro daquele jeito.

Nanã foi, naquele dia,
A Jesus mostrá seu riso
E omentá mais a quantia
Dos anjo do Paraíso.
Na minha maginação,
Caço e não acho expressão
Pra dizê como é que fico.
Pensando naquele adeus
E a curpa não é de Deus,
A curpa é dos home rico.

Morreu no maió matrato
Meu amô lindo e mimoso.
Meu patrão, aquele ingrato,
Foi o maió criminoso,
Foi o maió assarsino.
O meu anjo pequenino
Foi sacudido no fundo
Do mais pobre cimitero
E eu hoje me considero
O mais pobre deste mundo.

Soluçando, pensativo,
Sem consolo e sem assunto,
Eu sinto que inda tou vivo,
Mas meu jeito é de defunto.
Invorvido na tristeza,
No meu rancho de pobreza,
Toda vez que eu vou rezá,
Com meus juêio no chão,
Peço em minhas oração:
Nanã, venha me buscá!

Gonzaga por Cascudo

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TEXTO DE CÂMARA CASCUDO NA CONTRACAPA DO DISCO "LUIZ GONZAGA", 1973 (Emi-Odeon):

"LUIZ GONZAGA é uma legitimidade do sertão tradicional. Sua inspiração mantém as características do ambiente poderoso e simples, bravio e natural, onde viveu. Não imita. Não repete. Não pisa rastro de nome aclamado. E ele mesmo sozinho, inteiro, solitário, povoando os arranha-céus com as figuras imortais do Nordeste, ardente e sedutor, fazendo florir cardeiros e mandacarus, levantando os mormaços dos tabuleiros através das cidades tumultuosas onde permanece.
Fui menino no Sertão, 1909-1913. Tenho na memória o timbre das grandes vozes infatigáveis, ímpeto de guerrilhas no açodamento dos "crescendo", nasalamente infalível na modulação para "fechar" na dominante. Sertão sem rodovias, luz elétrica, gasolina. Vaqueiros, cantadores, romeiros de São Francisco de Canindé, Juazeiro, Santa Rita dos Impossíveis. Poeira heroica das feiras e das vaquejadas. Viola do rojão de dois-por-quatro, sanfonas de oito baixos, pobreza milionária na emoção irradiante, inexplicável alegria das coisas suficientes.
Luiz Gonzaga é um documento da Cultura Popular. Autoridade da lembrança e idoneidade da convivência. A paisagem pernambucana, águas, matos, caminhos, silêncio, gente viva e morta. Tempos idos nas povoações sentimentais voltam a viver, cantar e sofrer quando ele põe os dedos no teclado da sanfona de feitiço e de recordação.
Não posso compará-lo a ninguém. Luiz Gonzaga é uma coordenada humana que as ventanias urbanas fazem vibrar sem modificação. Não é retentiva, artificialismo, sabedoria de recursos mentais "aproveitando" o Sertão. Ele próprio é a fonte, cabeceira e nascente de suas criações. Sertão é ele, como a Bretanha está no bretão e a Provença em Mistral. Bem logicamente, a sua terra muda a fisionomia pelas mãos de ferro do Progresso. Técnicas, máquinas, combustíveis, sonhos novos. Mas, pelo lado de dentro, o Homem não muda, como a sucessiva aparelhagem em serviço do seu interesse. Luiz Gonzaga presta-nos, a nós, devotos das permanentes culturais brasileiras, a colaboração sem preço de uma informação viva, pessoal, humana.
Sanfoneiro do Sertão, brasileiro do Brasil, os que amam terra e gente nativa te saúdam na hora em que tua voz se eleva, vivendo a sensibilidade profunda da tu'alma sertaneja...

LUÍS DA CÂMARA CASCUDO - Natal, janeiro de 1973.
Fonte: Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo


Poema de Natal

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Eu não gosto de você, Papai Noel!...

Aldemar Paiva


Eu não gosto de você, Papai Noel!
Também não gosto desse seu papel
de vender ilusões à burguesia.
Se os garotos humildes da cidade
soubessem do seu ódio à humildade,
jogavam pedra nessa fantasia.

Você talvez nem se recorde mais.
Cresci depressa, me tornei rapaz,
sem esquecer, no entanto, o que passou.
Fiz-lhe um bilhete, pedindo um presente
e a noite inteira eu esperei, contente.
Chegou o sol e você não chegou.

Dias depois, meu pobre pai, cansado,
trouxe um trenzinho feio, empoeirado,
que me entregou com certa excitação.
Fechou os olhos e balbuciou:
“É pra você, Papai Noel mandou”.
E se esquivou, contendo a emoção.

Alegre e inocente nesse caso,
eu pensei que meu bilhete com atraso,
chegara às suas mãos, no fim do mês.
Limpei o trem, dei corda,
ele partiu dando muitas voltas,
meu pai me sorriu e me abraçou pela última vez.

O resto eu só pude compreender quando cresci
e comecei a ver todas as coisas com realidade.
Meu pai chegou um dia e disse, a seco:
“Onde é que está aquele seu brinquedo?
Eu vou trocar por outro, na cidade”.

Dei-lhe o trenzinho, quase a soluçar
e como quem não quer abandonar
um mimo que nos deu, quem nos quer bem,
disse medroso: “O senhor vai trocar ele?
Eu não quero outro brinquedo, eu quero aquele.
E por favor, não vá levar meu trem”.

Meu pai calou-se e pelo rosto veio
descendo um pranto que, eu ainda creio,
tanto e tão santo, só Jesus chorou!
Bateu a porta com muito ruído,
mamãe gritou ele não deu ouvidos,
saiu correndo e nunca mais voltou.

Você, Papai Noel, me transformou num homem
que a infância arruinou, sem pai e sem brinquedos.
Afinal, dos seus presentes, não há um que sobre
para a riqueza do menino pobre
que sonha o ano inteiro com o Natal.

Meu pobre pai doente, mal vestido,
para não me ver assim desiludido,
comprou por qualquer preço uma ilusão,
e num gesto nobre, humano e decisivo,
foi longe pra trazer-me um lenitivo,
roubando o trem do filho do patrão.

Pensei que viajara,
no entanto depois de grande,
minha mãe, em prantos,
contou-me que fôra preso
e como réu, ninguém a absolvê-lo se atrevia.
Foi definhando, até que Deus, um dia,
entrou na cela e o libertou pro céu.



ALDEMAR PAIVA

Aldemar Buarque de Paiva (Maceió, 20 de julho de 1925- Recife, 04 de novembro de 2014) foi um poeta, cordelista, radialista, jornalista, compositor, produtor artístico e publicitário brasileiro.
Foi o fundador da Rádio Difusora de Alagoas.
Oficial do Exército, foi transferido para o Recife, atuando inicialmente na Rádio Clube de Pernambuco, em substituição a Chico Anysio como produtor, apresentador e diretor artístico.

Genealogia de Leandro

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Durante doze anos de árdua pesquisa me destinei a escrever a primeira (e única) biografia do poeta Leandro Gomes de Barros Lima, o maior expoente da Literatura de Cordel. As poucas referências que haviam sobre o poeta, na obra de Câmara Cascudo, Chagas Batista, Sebastião Nunes Batista, Ruth Brito Lêmos Terra e outros autores foram a bússola que norteou o ponto de partida. Depois, com a ajuda de Cristina Nóbrega conseguimos algumas fotos e documentos da família do poeta. O escritor Pedro Nunes Filho, bisneto de uma tia de Leandro também foi um grande colaborador, fornecendo relatos mantidos pela tradição oral da família. Foi uma pesquisa pegada a "dente de cachorro" porque eu não tinha recursos para fazer a pesquisa "in loco" em cartórios, livros paroquiais, periódicos e outras fontes primárias. Mesmo assim consegui realizar a tarefa com imensa dificuldade. Natural que um trabalho feito nessas condições apresente alguma falha...

Foi com imensa satisfação que soube, através do amigo e colaborador José Paulo Ribeiro, da existência do livro "O ARRAIAL QUEIMADO DO PAULISTA", de Guttemberg Pereira, que dedica um capítulo inteiro à família do poeta Leandro Gomes de Barros, filho ilustre da cidade de Paulista-PB.

Apresento aos leitores do blog ACORDA CORDEL um ensaio histórico do escritor Guttemberg Pereira sobre o poeta Leandro Gomes de Barros que será de grande utilidade para todos que se empenham em resgatar a obra e a biografia desse grande expoente do CORDEL. (Arievaldo Vianna)


Escritor paraibano Guttemberg Pereira, 
autor do livro "Arraial Queimado do Paulista"


POETA LEANDRO GOMES DE

BARROS DESDE PORTUGAL


Guttemberg Pereira

O poeta Leandro Gomes de Barros Lima (ou Leandro Xavier de Farias) nasceu no ano de 1860, no sítio Melancias, município de Paulista, filho de José Gomes do Nascimento Lima e dona Adelaide Maria de Jesus.
Esta afirmativa tem diversas implicações frente à história da origem do poeta, disseminada por historiadores, biógrafos e pesquisadores da literatura de cordel até hoje.


Pombal-PB festeja o Sesquicentenário de nascimento de Leandro


Data de Nascimento
                       
A história firmou a data 19 de novembro de 1865 como sendo a data de nascimento de Leandro. Sua certidão de óbito, constante das fls. 41, do Livro nº 17, do Cartório de São José, Recife, Pernambuco, contém a informação de que Leandro faleceu aos 4 dias de março de 1918, com 58 anos de idade. Foi declarante o seu filho, Esaú Eloy de Barros Lima. Sendo um documento público, é presumivelmente verdadeiro no seu teor, e, na falta de outro documento que o contrarie, há de ser considerado o ano de 1860 para natalício do grande gênio do cordel. Todavia, na certidão de casamento de Francisco Antônio dos Santos e Amélia Maria da Conceição, de 18 de fevereiro de 1895, na povoação de Ipojuca, de cujo enlace Leandro foi testemunha e declara ter 29 anos de idade, sugerindo que estaria correta a data de 1865.
Alguns documentos da presente pesquisa foram cedidos pela professora e pesquisadora Cristina Nóbrega, e outros resgatados dos arquivos cartorários e eclesiásticos.


Ruínas da casa onde nasceu Leandro Gomes de Barros


Naturalidade

Ao longo da história, convencionou-se biografar o poeta como sendo natural da cidade de Pombal, posto que o sítio Melancias se localizava na jurisdição de Pombal à época do seu nascimento.
É uma questão um tanto delicada, todavia, de simples resolução. Deve-se atentar para o fato de que Pombal ainda não era um município em 1860, vindo a se tornar cidade somente no ano de 1862.
Com a emancipação política do distrito de Paulista em 23 de dezembro de 1961, o sítio Melancias ficou incluído no perímetro municipal da nova cidade de Paulista. Ademais, a história da família do poeta está umbilicalmente ligada à povoação de Paulista desde o século XVIII, com a chegada dos seus primeiros ancestrais, vindos de Pernambuco, e se unindo a outro segmento familiar da cidade de Serra Negra do Norte, como adiante se verá. Isto, por si só, já é suficiente para qualificar Leandro como natural de Paulista, pois a ligação com a vila de Pombal era meramente política. Os laços familiares, na sua essência, sempre foram com a povoação de Paulista, desde o passado mais remoto da sua família no sertão paraibano.
Após séculos de embates causados por esse tema na sociedade, o legislador pátrio resolveu enfrentar a questão. A medida provisória nº 776, de 2017, que foi convertida na lei nº 13.484 de 26 de setembro de 2017, alteroua lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os registros públicos.
Pela nova redação, foi acrescentado o parágrafo 4º ao artigo 19 da Lei de Registros Públicos, estatuindo que a naturalidade poderá ser do município em que ocorreu o nascimento ou do município de residência da mãe do registrando na data do nascimento, desde que localizado em território nacional, e a opção caberá ao declarante no ato de registro do nascimento.
A nova lei parece pôr fim à antiga controvérsia. A naturalidade do cidadão é determinada pela sua afinidade, pelos laços afetivos com a sua terra, pela propriedade onde vive, pelo cerco familiar. Não é mais pela frágil ligação, fruto da divisão política ou do mapa geográfico.
Ante todas essas evidências, pode-se afirmar, perante a lei e a história, que o poeta Leandro Gomes de Barros é natural do município de Paulista.



O nome

            O registro público das pessoas naturais no Brasil só se tornou obrigatório em 1º de janeiro de 1889, pelo decreto nº 10.044, de 22 de setembro de 1888. Até então, todo registro se processava nas igrejas.Cuidava-se, em verdade, de interesses políticos em jogo: a Igreja Católica temia perder prestígio, caso o registro civil passasse a ser estatal. Nessa época, inclusive, como tentativa de consolidação do poder eclesiástico na esfera do controle do estado civil das pessoas, foram reeditadas as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, em 1852.
            O Estado se utilizava dos registros eclesiásticos apenas para fins estatísticos, como colher dados para calcular a população, principalmente para o recrutamento de homens ao serviço militar. Assim, não havia restrições quanto a modificações de nome, e os cidadãos o mudavam conforme seu livre-arbítrio, discricionariamente.
Não se pode afirmar, com exatidão, qual nome recebeu Leandro, a princípio. Seu pai se chamava José Gomes do Nascimento Lima, e sua mãe, Adelaide Maria de Jesus, filha de Manoel Xavier de Farias e Antônia Maria de Jesus (as mulheres raramente recebiam o patronímico, ou nome de família). Os pais de Leandro eram primos, já que Xavier, Farias e Gomes eram da mesma estirpe. O casamento consanguíneo era quase um mandamento nesta família. O mais provável é que Leandro tenha assumido inicialmente o nome de Leandro Xavier de Farias.
No livro nº 1 do registro de nascimentos do Cartório de Registro Civil de Pombal, consta o registro de nascimento de Francisco Xavier das Chagas, filho de Camillo Xavier de Farias, irmão de Leandro. Isto faz crer que Leandro também se chamava Xavier de Farias.
Camillo era um irmão bem mais velho do que Leandro, nascido em 15 de julho de 1851, foi batizado no dia 4 de setembro do mesmo ano, pelo padre Álvaro Pereira de Sousa.
Documentos revelam, no entanto, que o pai de Leandro, José Gomes do Nascimento Lima, não faleceu tão jovem assim. José Gomes e Adelaide se casaram pelos idos da primeira metade do ano de 1842, quando ela contava com a idade de 16 anos. Adelaide faleceu em 25 de março de 1916, na cidade de Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, com idade de 90 anos, o que indica que ela nasceu no ano de 1826. A primeira filha do casal foi Cordulina, nascida no dia 2 de setembro de 1843 e batizada 23 do mesmo mês; Maria, nascida em 4 de julho de 1844, batizada no dia 5 de agosto do mesmo ano, pelo padre Luíz Inácio Cardoso, e seus padrinhos foram Francisco de Barros Passos e Maria de Jesus. Em seguida, nasceu Antônia, em 2 de março de 1847, batizada no dia 10 de junho do mesmo ano pelo padre Luíz Inácio Cardoso, e seus padrinhos foram seu avô Manoel Xavier de Farias e Francisca Arcanja. Em 5 de abril de 1848, nasceu Hermínia, batizada no dia 14 de junho do mesmo ano pelo padre Vicente Xavier de Farias, e seus padrinhos foram o tenente Cândido José de Assis e sua esposa Maria Florentina da Conceição. Na data de 2 de abril de 1850, nasceu Manoel, batizado no dia 26 do mesmo mês e ano, pelo padre Luíz Inácio Cardoso, e seus padrinhos foram Antônio de Barros Passos e Francisca Maria de Jesus. Leandro tinha ainda um irmão chamado Camillo Xavier de Farias, a quem já me referi anteriormente, nascido em 15 de julho de 1851, batizado no dia 4 de setembro do mesmo ano, pelo padre Álvaro Pereira de Sousa, e seus padrinhos foram Pedro de Sousa Silva e sua mulher Jacinta Maria da Conceição.
Leandro provavelmente nasceu em seguida, supostamente em 16 de novembro de 1865. Todavia a certidão de óbito de Adelaide dá conta da existência de oito filhos, porém sem nomeá-los.
Esta pesquisa descobriu, com fonte documental segura, a existência de seis irmãos do poeta e que faltou apenas um filho de José Gomes e Adelaide, não sendo possível localizar nenhum registro a seu respeito. Considerando que, por oportunidade do casamento, o pai de Leandro contasse com a idade de 24 anos, e levando em conta seu falecimento quando o poeta era uma criança de apenas oito anos, ele teria falecido aos 54 anos de idade.
Adelaide viveu seus últimos anos sob os cuidados de seu neto Ananias Henriques da Silva, filho da sua filha Hermínia (a qual tinha como padrinhos de batismo o coronel Cândido José de Assis e sua primeira esposa, Maria Florentina da Conceição). Ananias declarou o nome da sua avó na certidão de óbito como Adelaide Xavier de Farias.
            Difícil esclarecer a razão de Leandro ter adotado o sobrenome Gomes de Barros Lima. O mais provável é que seu pai descenda de outro tronco familiar muito importante na história dessa região sertaneja. Seria a família originada de Pedro Soares da Silva e Mônica Rodrigues dos Santos.
            Dados levantados pelo grande genealogista Cornélio Ferreira da Cruz, com minha singela contribuição em relação a alguns personagens, reconstituem esta árvore genealógica capital na família sertaneja.
            O sobrenome Barros, adotado pelo poeta Leandro, não pode ter vindo de outro ramo senão deste. Em algum momento que não se pode precisar, um membro da família Gomes se uniu a um descendente desta família, o que oportunizou ao poeta adotar o Barros em referência à família do seu pai.
            Pedro Soares da Silva (o Velho), natural da capital da Província da Parahyba do Norte (hoje João Pessoa) se casou com Mônica Rodrigues dos Santos. Era proprietário rural no antigo sertão das Piranhas e Piancó. Diferentemente dos proprietários rurais da sua época, não era sesmeiro. Suas terras foram adquiridas com recursos próprios. Quanto à parte que pertencia a Piancó, esta pesquisa acrescentou ao trabalho de Cornélio Ferreira o registro de uma escritura datada de 3 de outubro de 1749, pela qual foi formalizada a doação de uma escravinha de nome Antônia, com idade aproximada de 10 anos, filha da escrava Maria Angola, para o fazendeiro José da Cruz Villa Nova, esposo da sua neta Mônica Rodrigues dos Santos.
            Entre outros filhos, Pedro Soares da Silva tinha uma filha chamada Maria Nobre dos Santos, primeira esposa de João De Barros de Abreu, o segundo requerente da sesmaria nº 253, de 14 de setembro 1736.
            João de Barros foi casado a segunda vez com Antônia Lourença de Almeida, em cujo casamento tiveram uma filha por nome de Francisca, batizada em 25 de dezembro de 1752.
            Entre outros filhos de João de Barros de Abreu, estava Joanna de Barros e Abreu, ou Joanna de Barros y Abreu, casada com Antonio dos Santos Villa Nova. Divergências de nome: Joanna de Barros e Abreu, conforme declaração testamentária feita por seu filho João Evangelista dos Santos; Joanna de Barros y de Abreu, conforme declaração feita por ela própria na condição de madrinha, quando da formalização do registro de batismo de Josefa, filha de José da Cruz Villa Nova, em 30 de novembro de 1749, ocasião em que ainda era solteira. O padrinho foi o padre licenciado, reverendo Pedro Bezerra de Brito. No seu próprio testamento, datado de 29 de dezembro de 1814, Joanna declarou que era filha de João de Barros de Abreu e Maria Nobre dos Santos, já falecidos. Joanna faleceu no dia 10 de setembro de 1821, com aproximadamente 84 anos de idade, e no mesmo ano, foi procedido o seu inventário; já o de Antônio foi iniciado no ano de 1794.


Giovanetta, filha de Leandro, com os filhos no Rio de Janeiro

Os filhos de Joanna de Barros e Abreu eram:
·        Francisco dos Santos Villa Nova, alferes (mesma patente que tinha o mártir Tiradentes), casado com Jacinta Maria. Ele exerceu o cargo de juiz ordinário em Pombal no ano de 1809. Faleceu em 10 de julho de 1840.
·        João Evangelista dos Santos, casado com Francisca Leite de Faria, filha de Manoel José de Farias, antigo juiz ordinário em Pombal (1801 e 1812).  Ocupou o cargo de vereador em Pombal no ano de 1799. Faleceu em 16 de setembro de 1842.
·        Leandro dos Santos Barros (em alguns documentos, assina-se Leandro dos Santos Barros Lima), conforme já visto em capítulo anterior, proprietário do sítio Orondongo, bem como de diversas outras terras na região de Paulista. Morreu solteiro em 15 de fevereiro de 1854. Leandro foi um dos homens mais poderosos de seu tempo e pode ter servido de referência a diversas gerações posteriores a ele, inclusive ao poeta Leandro.
·        Anna Maria dos Reis Vieira, casada com Antônio Fernandes de Almeida. Em alguns documentos antigos, o nome completo de Anna aparece como Anna Maria de Jesus.
·        Manoel dos Santos Villa Nova, casado com Maria José de Jesus.
·        Maria Nobre da Conceição, casada com o capitão da cavalaria auxiliar da vila de Pombal, José Ferreira de Sousa (capitão Zé da Formiga).
·        Joanna de Barros, casada com José Fernandes de Almeida.
·        Antonia Maria dos Santos, casada com Pedro Soares Barbosa, tenente, proprietário do sítio Riacho da Onça, pertencente ao município de Paulista. Pedro foi juiz ordinário em Pombal no ano de 1794, tendo assinado o primeiro Termo de Vereança nomeando almotacés para os diversos sítios já povoados, inclusive Paulista, em 29 de outubro de 1794.

Casamento e filhos de Leandro Gomes de Barros

           Leandro se casou no dia 3 de outubro de 1893 com dona Venustiniana Eulália de Souza, na paróquia de São Miguel em Ipojuca, Pernambuco, celebrado pelo cônego Luiz Diniz. A certidão menciona o pai de Leandro com o nome de José Gomes de Lima, e a mãe, Adelaide Gomes de Lima. Observe que não aparece o sobrenome Barros (
Site dos Mórmons - www.familysearch.org - Matrimônios 1886, Junho-1902, Janeiro, com Venustiniana, [Venus], Eulália Aleixo, nascida em 1878, filha de Joaquim Amâncio de Souza e Maria Saturnina Prudência de Morais).
A primeira filha do casal foi Rachel Aleixo de Barros Lima, que nasceu em 20 de julho de 1894, em Ipojuca, Pernambuco. Casou-se com Pedro Batista e faleceu em 1926, em Guarabira, Paraíba. Teve uma filha, Djanane (falecida logo após o nascimento). O segundo filho de Leandro foi Esaú Eloy, que nasceu em 1º de dezembro de 1900, em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, e se casou com Izaura Olindina de Araújo Brito, de descendência desconhecida; o que sabemos até agora é que ele migrou para o Rio de Janeiro, entre 1924 e 1930, e integrou a Coluna Prestes. A terceira filha recebeu o nome de Gilvanetta, (Julieta) de Barros Lima, que nasceu em 29 de março de 1903, em Jaboatão, Pernambuco, a qual se casou com Reginaldo de Carvalho em 1923. Tiveram três filhos, entre eles Ivone Ivete de Carvalho, que se casou com Joe Correia Espindola. Gilvanetta faleceu no Rio de Janeiro. Por fim, Herodias de Barros Lima, que nasceu em 20 de agosto de 1906, em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, e se casou com Eduardo Francisco de Araújo, de quem se desquitou em 1940. Faleceu em 1960, sem deixar descendentes.

Uma história mal contada

            Na busca pela real história da origem do grande mestre do cordel, muitos e renomados pesquisadores já se embrenharam por relatos fabulosos e equivocados. Credito tais equívocos à escassez de dados biográficos de Leandro, cujos poucos vestígios foram soterrados no infortúnio dos arquivos eclesiásticos que não resistiram ao tempo e má conservação. Restaram vagas reminiscências, que foram tardiamente historiadas, o que levou ao acúmulo de inconsistências.
Destaco o escritor Pedro Nunes Filho, autor da grande obra O Guerreiro Togado. O texto a seguir se encontra no livro Leandro Gomes de Barros, Vida e Obra, do escritor cearense Arievaldo Viana, cujo relato compõe também a obra da professora e escritora Cristina Nóbrega.

“Consta que a avó do Padre Vicente era índia e o avô, português. Sabemos que os portugueses desbravadores dos nossos sertões chegavam desacompanhados de mulheres e precisavam casar. Por isso, pegavam índias a dente de cachorro. Foi o que aconteceu com o avô do Padre Vicente. Um dia ele estava caçando mocó e o cachorro correu atrás de algo que ele não viu. Quando chegou ao local onde o animal estava acuado, encontrou uma indiazinha em cima de uma árvore. Necessitado de mulher para casar, ele tratou logo de retirá-la daquele local. Ela ficou tão assustada que se urinou. Tinha apenas 12 anos. Ele a levou para casa, amarrou no pé da mesa, até que ela amansasse. Quando isso aconteceu, ele a batizou e com ela contraiu matrimônio. Teve vários filhos, entre eles, Manoel Xavier de Farias. Um dia, um grupo de facínoras, atacou a casa de Manoel e matou seu pai, para roubar uma baixela de prata que ele havia trazido de Portugal. A índia, sua mulher, inconformada, reuniu os filhos, deu dinheiro a eles, fê-los acompanhar de um escravo negro de sua confiança e mandou que eles ganhassem o mundo para vingar a morte do pai. Disse mais: ‘ - Só dou a bênção a vocês quando voltarem trazendo as orelhas dos bandidos.'Os filhos saíram juntos e foram matando os ladrões um por um. Os últimos estavam comendo uma galinha debaixo de um juazeiro, utilizando os talheres roubados. Foram mortos também. Terminada a empreitada de vingança, os filhos regressaram e entregaram à índia um cordão com todas as orelhas. Ela as colocou em uma cumbuca e dependurou acima do fogão de lenha para que ficassem defumadas. Meu avô, Antônio Nunes de Farias, filho de Bernardo Nunes da Rocha e de Josefa Xavier de Farias, contava a meu pai, Pedro Nunes de Farias, que quando ia visitar a bisavó, ela sempre repetia o mesmo ritual. Chamava-o e dizia: '- Meu filho, venha ver as orelhas dos bandidos que mataram seu bisavô!' Meu avô dizia que as peças pareciam cascas de angico secas". Tenho também a informação' de que aquele sentimento de vingança da índia incomodava o Padre Vicente, seu neto, que sempre insistia para ela jogar fora as orelhas, mas ela não o atendia”.


Talher de prata que pertenceu aos antepassados de Leandro (foto: Pedro Nunes Filho)


Leandro fala do CABAÇO DAS ORELHAS nesse folheto


Abaixo, segue o famoso “causo” da morte de Francisco Xavier de Farias (Chico Xavier), da lavra e narrativa de Juvenal Lamartine (Serra Negra do Norte9 de agosto de 1874 —Natal18 de junho de 1956), em seu livro Velhos Costumes do Meu Sertão:

“No começo do século XIX, fixou residência na Fazenda Saco do André, quatro léguas mais ou menos ao poente da cidade de Serra Negra, João Gomes de Faria, cujo pai viera de Pernambuco com mais três irmãos. Localizaram-se, todos, naquele município sertanejo, casando-se com netas do seu fundador, Capitão Manoel Pereira Monteiro. João Gomes de Faria casara-se com uma prima pelo lado paterno, filha de Francisco Xavier. Seu sogro, Francisco Xavier, viúvo e paralítico, residia próximo à sua casa, em companhia de alguns escravos e de um filho de criação e afilhado. Passaram-se os tempos e, um dia, inventa o afilhado de viajar - conhecer o mundo - como se dizia. O velho fez tudo para dissuadi-lo, afeiçoado ao moleque que era "os seus pés e suas mãos" e que ademais já possuía uma boa "semente" de gado prosperada em cada ferro com os presentes do padrinho. De nada valeu a insistência; o moleque tomou a benção, fez uns dinheiros pela venda de um gado e ganhou as estradas. Tempos depois, numa manhã de domingo, aparece o afilhado dizendo, meio desconfiado, que de viagem por perto, tinha cortado caminho para visitar o padrinho e pedir para ele lhe botar a benção. Perguntou por João Gomes e veio a saber que o mesmo, como de costume, tinha ido à missa e fazer umas compras, devendo voltar à boca da noite. Zanzonou umas horas por ali, enjeitou de novo em ficar na fazenda, recebeu a benção do velho e com elas uns dinheiros de agrado, e foi-se... Horas depois, batem uns cabras armados que malvadam, matam e roubam todo o dinheiro do velho Chico Xavier. Um escravo que foi mandado depressa à rua, dizer da notícia, já deu com João Gomes no caminho de volta à fazenda. Este tratou de esporar o cavalo e lá chegando diligenciou o enterro do sogro e tratou de sindicar o acontecido. Indaga daqui e dali, tomou conhecimento da visita do moleque e da preocupação que teve em tomar notícias suas e da provável hora do regresso. Os quatro cabras chegaram depois para matar e roubar o velho. João Gomes não trastejou: mandou mudar a sela para outro animal e, em companhia de alguns homens da sua confiança, tomou o rastro do moleque. Algumas léguas adiante, deu com o afilhado que interrogado, veio a confessar ter guiado os bandidos até a fazenda do padrinho para depois dividirem o saque. Tomada a notícia do rumo dos bandidos, ali mesmo matou o moleque, continuando a perseguição do grupo, a que deu fim, um a um... . O último deles - contavam os mais velhos - e que já era justamente o cabeça, três anos depois é que foi justiçado já nos sertões do Piauí. João Gomes a esse tempo andava em companhia de um seu afilhado, Manoel José, rapaz destemido e melhor escopeteiro. No quebrar da barra de uma madrugada de inverno, deram com o cangaceiro que vinha montado e trazendo o clavinote vestido por uma capa de couro de carneiro. João Gomes tomou-lhe a frente e perguntou se ainda se lembrava de um velho entrevado, de nome Francisco Xavier, por ele assassinado no sertão das Espinharas. Dizem que o gesto de defesa que ensaiou o "papouco" de um clavinote o fez terminar no outro mundo. João Gomes mandou o afilhado cortar a orelha do bandido, a qual se foi juntar as outras quatro que já possuía e fazia conservar, salgadas e enfiadas em um arame - atestado da terrível vingança exercida contra os assassinos do seu sogro e tio”.


Relógio que pertenceu à D. Josefa Xavier de Farias, tia de Leandro
 e bisavó do escritor Pedro Nunes Filho


            O escritor Pedro Nunes Filho retratou os fatos transmitidos ao longo de gerações pela sua família. A tradição oral é importante fonte histórica, porém é a mais volátil e vulnerável a sofrer alterações no curso da história.
            Já o escritor Juvenal Lamartine de Faria, por ter vivido em época quase contemporânea aos fatos, merece atenção especial pela narrativa do causo aqui citado. Juvenal foi advogadojornalistamagistrado e político, além de ser governador do Rio Grande do Norte por dois anos e nove meses, sendo destituído com o advento da Revolução de 1930 comandada por Getúlio Vargas, que depôs todos os governadores eleitos na época, inclusive os revolucionários. Exilou-se na Europa, retornando ao Estado do Rio Grande do Norte já no governo de Rafael Fernandes Gurjão. Foi deputado federal de 1906 a 1926 e também senador de 1927 a 1928.
Observe que, na essência, as duas histórias se encontram, mas o texto de Pedro Nunes Filho aponta para a origem do poeta Leandro Gomes de Barros que, segundo o escritor, era seu parente, já que uma ancestral sua seria irmã de Adelaide Maria de Jesus, mãe de Leandro, bem como do padre Vicente Xavier de Farias, lembrando que o padre Vicente e Adelaide eram filhos de Manoel Xavier de Farias e de Antônia Maria de Jesus.
Pedro Nunes, ao se referir aos avós do padre Vicente, só pode estar falando dos avós paternos. Segundo ele, os pais de Manoel Xavier de Farias seriam um português, cujo nome se ignora, e uma índia capturada a dentes de cachorro, quando tinha 12 anos de idade. O português teria aprisionado a selvagem e feito dela sua esposa, com quem constituíra numerosa família.
Unindo as duas histórias, pode-se concluir que o português a quem se refere Pedro Nunes seria o mesmo Francisco Xavier de Farias assassinado pelos cangaceiros da história de Juvenal Lamartine.
Embora se saiba que todo acontecimento que sobrevive ao tempo vira história, este possui um fundo de verdade, e um estudo criterioso das origens dessa família vai revelar as lendas por trás de cada versão.
Frei Hugo Fragoso, professor de História na Universidade Católica de Salvador e autor do prefácio da obra Cariris Velhos, de Pedro Nunes Filho, ao traçar a genealogia do autor, identifica que Pedro Nunes tinha uma ancestral indígena, porém por linha diversa, já que Pedro era parente de Leandro Gomes de Barros por descender de Josefa Xavier de Farias, que seria irmã de Adelaide, mãe de Leandro. Josefa era casada com Bernardo Nunes da Rocha, filho de Antônio Nunes da Rocha e de uma índia sucuru, batizada com o nome cristão de Tereza Maria de Jesus. Assim se explica a confusão na história do parentesco entre o autor de Guerreiro Togado e o poeta paulistense.


Certidão de casamento de Leandro e Venustiniana. 
Leandro sempre declarou que seu pai se chamava José Gomes de Barros Lima


Famílias Xavier, Faria (ou Farias), Alves (ou Alvares), Gomes, Pereira e Monteiro

            Simão Gomes e Margarida de Faria formaram o casal mais antigo que gestou toda a estirpe em referência, atingido pelo presente estudo. O sargento-mor José Gomes de Farias, riquíssimo fazendeiro de origem portuguesa, filho de Simão Gomes, foi proprietário do Arraial Queimado e dos sítios Almas e Caiçara de Baixo. As informações constam de seu testamento datado de 30 de outubro de 1763. Após formalidades iniciais, diz o documento:

“Declaro que sou natural da freguesia de Nossa Senhora do Monte da Caparica, termo da Almada filho legitimo de Simão Gomes e de sua molher Margarida de Faria. Declaro que fui casado com Clara do Espirito Santo do qual matrimonio tivemos cinco filhos, três já mortos e dois são vivos, os quaes vivos hum se chama José Gomes de Faria, outro Miguel Gomes de Faria, hum sacerdote do habitto de São Pedro e o outro também sacerdote do habitto do Santo Espirito e ambos auzentes da minha companhia”.

            Ao falecer, o sargento-mor José Gomes de Faria deixou uma fortuna incalculável para seus filhos, ambos padres e sem herdeiros diretos, José Gomes de Farias e Miguel Gomes de Farias. Ao falecer o padre Miguel, o padre José Gomes herda toda sua fortuna, se constituindo em um dos maiores latifundiários das ribeiras das Piranhas, rio do Peixe e Espinharas.
Simão Gomes e Margarida de Faria eram também pais de João Gomes de Faria, cuja esposa era Marianna Henrique de Faria. João Gomes e Marianna Henrique tinham um filho chamado Francisco Xavier de Farias, que veio para o Brasil, se estabeleceu em Recife, Pernambuco, e se casou com Manuella Alves da Conceição no dia 14 de outubro de 1754, na freguesia de São Pedro, em Recife. Manuella era filha de Domingos Alves Esteves e Joanna Araújo de Deos, casados na vila de Viamão, freguesia de Santa Maria, em 12 de janeiro de 1711 – informações constantes do processo de admissão para familiatura do Santo Ofício de Francisco Xavier de Farias (o filho).
O casal Francisco Xavier de Farias e Manoella Alves da Conceição tiveram cinco filhos homens: Joaquim Álvares de Farias, João Gomes de Farias, Luís Álvares de Farias, Pedro Álvares de Alcantra e Francisco Xavier de Farias (segundo do nome).
Em meados da década de 1770, sem que se possa precisar a data, faleceu no sertão das Piranhas o padre José Gomes de Farias. Não possuindo herdeiros descendentes nem ascendentes, seu espólio seria transferido a seus tios, João Gomes de Farias e Manoel Gomes de Farias. Como já houvesse falecido João Gomes e Manoel Gomes de Farias, o direito de herança se transferiu para seus filhos, entre eles, Francisco Xavier de Farias. Após inventário dos bens, vieram tomar posse do patrimônio nas terras do interior os filhos de Francisco Xavier de Farias.
Entre as propriedades, estava uma grande fazenda chamada Pitombeira, nas Espinharas, onde se fixaram inicialmente Joaquim Álvares de Farias, João Gomes de Farias e Luís Álvares de Farias.
Aqui tem lugar o estudo minucioso e criterioso do grande Olavo de Medeiros Filho, constante do seu livro Velhas Famílias do Seridó.
Tratando das origens de Serra Negra do Norte, afirma Luis Câmara Cascudo que “A tradição evoca uma grande sesmaria dada em 1670 aos Oliveira Ledo na ribeira do Espinharas, Paraíba, estendendo-se, na indecisão dos limites, pela Capitania do Rio Grande do Norte. Coube a João de Freiras da Cunha o trecho correspondente ao futuro município. Falecendo o sesmeiro, herdou-a seu irmão Domingos Freitas da Cunha que a vendeu por 600$000 a Manoel Barbosa de Freitas, situando este uma fazenda no local. Doou-a ao sobrinho Manoel Pereira Monteiro, fundador da povoação, grande lavrador e fazendeiro”.
Ainda sobre a origem da atual cidade de Serra Negra do Norte, assim se expressou Juvenal Lamartine de Faria: “A cidade de Serra Negra do Norte nasceu de uma fazenda de gado ali situada por meu 6º avô, Manoel Pereira Monteiro, que a recebeu, por doação, de seu tio Manoel Barbosa de Freitas, cunhado dos Oliveira Ledo, cobrindo duas léguas de terra pelo Rio Espinharas abaixo, com três léguas para o nascente e três para o poente do mesmo rio”.
O coronel Manoel Pereira Monteiro, fundador da cidade de Serra Negra do Norte, se casou com Teresa Tavares de Jesus, de cuja união nasceram cinco filhos. Entre eles estava Manoel Pereira Monteiro (segundo do nome), que também foi o único a deixar descendentes.
Manoel Pereira Monteiro II, nascido em 1725, se casou com Thereza Maria da Conceição, com quem teve sete filhos, sendo dois homens e cinco mulheres.
Das cinco filhas do capitão Manoel Pereira Monteiro II, três se casaram com filhos de Francisco Xavier de Farias: Antônia Maria do Espírito Santo com João Gomes de Farias; Maria José do Nascimento com Joaquim Álvares de Farias, no dia 25 de novembro de 1794, na Fazenda Conceição, no Seridó; e Anna Maria de Jesus com Luís Álvares de Faria, no dia 6 de outubro de 1795, na capela de Nossa Senhora do Ó, em Serra Negra do Norte. Olavo de Medeiros detalha toda a genealogia desta família com base em farta documentação eclesiástica que foi bem preservada na matriz do Seridó.
Quanto aos demais filhos de Francisco Xavier de Farias, Pedro Alves de Alcantra se casou com Francisca Maria, cuja origem não foi possível apurar; e Francisco Xavier de Farias II se casou com Josefa Pereira de Magalhães, no dia 29 de novembro de 1780, na matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso. Josefa era filha de Antônio Pereira Magalhães e Mariana Vieira da Silva, registro constante do processo de familiatura do Santo Ofício (PT/TT/TSO-CG/A/008-001/9699). Em vários registros de casamentos de seus filhos, Josefa Pereira de Magalhães aparece com o nome de Josefa Maria da Conceição ou Josefa Maria do Espírito Santo. Isto é reflexo da fragilidade do nome em uma época em que não existia registro civil sob tutela do Estado. Estes documentos, trazidos à luz por esta pesquisa, deixam por terra a versão ventilada no causo de Pedro Nunes Filho, de que Francisco Xavier de Farias (segundo do nome) seria casado com uma índia, de cuja união teria provindo a família do poeta Leandro Gomes de Barros.
Luís Álvares de Farias (ou Alves), cuja história já foi esmiuçada em capítulo anterior, era proprietário dos sítios Arraial Queimado e Arraial do Paulista, um por herança do padre José Gomes de Farias e outro por compra feita ao capitão José Félix Machado. Após se casar com Anna Maria de Jesus, em 1795, veio residir definitivamente no sítio Arraial Queimado. De seu casamento, nasceram sete filhos: dois homens e cinco mulheres.
Seu irmão, João Gomes de Farias, permaneceu no Rio Grande do Norte. Do seu casamento com Antônia Maria do Espírito Santo, nasceram nove filhos: sete homens e duas mulheres. Entre os homens, estava João Gomes de Farias Júnior (major João Gomes).
No dia 6 de agosto de 1818, se casaram na matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso João Gomes de Farias Júnior e sua prima, Joanna Maria da Conceição. Ela, filha de Luís Alves de Farias; e ele, de João Gomes de Farias.
O major João Gomes de Farias Júnior fixou residência no sítio Saco do André, em Paulista. Importante documento resgatado por esta pesquisa é a escritura de doação feita por sua viúva, dona Joanna Maria da Conceição a seu filho Leandro Gomes Mariz, após a morte do major João Gomes em 31 de março de 1870. Ela doa metade da casa e das terras do sítio Saco do André.
Este documento comprova que a versão de Juvenal Lamartine está situada corretamente, todavia pecou o ilustre potiguar ao afirmar que João Gomes de Farias Júnior seria genro de Francisco Xavier de Farias. Era, em verdade, seu sobrinho, casado com uma prima, filha de seu outro tio Luís Alves de Farias. O major João Gomes teria feito vingança pela morte de seu tio. O erro de Pedro Nunes, no entanto, foi afirmar que Francisco Xavier de Farias era português e casado com uma índia.
O cotejo das duas versões, não obstante possa parecer um alheamento da história, ou um relato enfadonho, foi escolhido para ilustrar a genealogia do poeta Leandro Gomes de Barros, e mostrar os caminhos da família Xavier de Farias (ou Faria), Gomes, Álvares (ou Alves), até chegar ao sertão do Rio Grande do Norte e Paraíba.
Francisco Xavier de Farias, vítima do assassinato que gerou a epopeia da vingança do major João Gomes, era pai de Manoel Xavier de Farias (casado com Antônia Maria de Jesus). Entre os filhos desta união, destacam-se o famoso padre Vicente Xavier de Farias e dona Adelaide Maria de Jesus (ou Adelaide Xavier de Farias), mãe do grande mestre do cordel.
Conforme todas as fontes apresentadas, a família de Leandro chegou a Paulista depois que seu bisavô e os irmãos dele vieram de Pernambuco e se uniram com outra família na cidade de Serra Negra do Norte. Eles eram herdeiros de grandes porções de terras em Paulista, o que atraiu seu bisavô a se fixar nestas terras. Estas famílias formam a base da população de Paulista.
Como já demonstrado em capítulo anterior, Luís Alves de Farias foi dono de quase todas as terras que formam o atual município de Paulista, e sua descendência, juntamente com as dos seus irmãos João Gomes de Farias e Francisco Xavier de Farias, povoaram esta região, demonstrando que, do ponto de vista genealógico, sempre estivemos mais ligados ao município de Serra Negra do Norte do que a Pombal. Com este último, a ligação sempre foi meramente político-administrava, e que praticamente não exerceu influência na formação da sociedade paulistense.
Observemos que a gênese do tronco familiar que irradiou esta família por todo o sertão não passa pela vila de Pombal, a não ser pela ligação meramente política da povoação de Paulista para com aquela vila.
Dentre as diversas propriedades, estava parte dos sítios Queimado e Caiçara de Baixo, ou Melancias, herdados pelo avô de Leandro, Manoel Xavier de Farias e seus irmãos, entre eles João Gomes Xavier de Farias, cujo inventário se deu em 1857. Entre os bens arrolados, está a propriedade do sítio Queimado, possuída em comum com outros herdeiros.
            Possuo uma infinidade de outros ascendentes, mas num resumo, a árvore genealógica de Leandro Gomes de Barros, ou Xavier de Farias pode ser assim descrita:
Seus pais:
José Gomes do Nascimento Lima (paraibano)
Adelaide Maria da Conceição (paraibana)
Avós maternos:
Manoel Xavier de Farias (paraibano)
Antônia Maria de Jesus (paraibana)
Bisavós maternos:
Francisco Xavier de Farias II (pernambucano)
Josefa Pereira de Magalhães ou Maria da Conceição (paraibana)
Trisavós maternos:
Francisco Xavier de Farias (português)
Manuela Alves da Conceição (pernambucana)
Tetravós maternos:
João Gomes de Faria (português)
Mariana Henrique de Faria (portuguesa)
Quintos avós maternos:
Simão Gomes (português)
Margarida de Faria (portuguesa)


Folhetos raros do 'Rei da Poesia Sertaneja'


            Em 18 de maio de 2018, foi publicada no Diário Oficial do Estado da Paraíba a lei nº 11.126, de 17 de maio de 2018. Esta lei reconhece o município de Paulista como “Patrimônio Cultural do Cordel”, pelo aniversário de 100 anos da morte de Leandro Gomes de Barros, nascido no sítio Melancias, município de Paulista. Reconhece com o mesmo título a cidade de Pombal, que política e geograficamente polarizava a região ao tempo do nascimento do mestre do cordel. O projeto foi idealizado pelos deputados Tião Gomes e Julys Roberto.

(Do livro O ARRAIAL QUEIMADO DO PAULISTA)


REFERÊNCIAS:

CRUZ, Cornélio Ferreira da. Família Formiga. 1ª ed. Patos, PB: 2012.

 

________________________. Famílias do Sertão Paraibano. 2ª ed. Patos, PB: 2017.

 FARIAS, Juvenal Lamartine de. Velhos Costumes do meu Sertão. 2ª ed. Natal: Fundação José Augusto, 1996.

 NUNES FILHO, Pedro. Guerreiro Togado, Fatos Históricos da Alagoa do Monteiro. Recife: Editora FacForm, 2011.

 VIANA, Arievaldo. Leandro Gomes de Barros, o mestre da literatura de cordel: vida e obra. 1ª ed. Mossoró, RN: Editora Queima Bucha, 2014.

 Arquivo Histórico Ultramarino – Documentos Avulsos da Paraíba.

 Arquivo da Paróquia de São Miguel (Ipojuca – PE).

 Acervo do Cartório de Registro Civil de Vitória de Santo Antão – PE.

 Acervo do Cartório de Registro Civil do 1º Distrito de Jaboatão – PE.

 Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Ó (Serra Negra do Norte – PB).

 Acervo do Cartório I Ofício de Notas “Cel. João Queiroga” (Pombal – PB).

 Acervo do Cartório “Guiomar Tavares Formiga” (Pombal – PB).

 Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Bom Sucesso (Pombal – PB).

 Acervos dos Cartórios da 1ª e 2ª Varas do Fórum “Promotor Francisco Nelson da Nóbrega” (Pombal – PB).

 Arquivos do Tribunal do Santo Ofício:

http://genealogiafb.blogspot.com.br/2016/10/habilitacoes-cargos-do-santo-oficio-ii_31.html.

 Arquivos particulares de Cristina Nóbrega.



Biografia de Leandro escrita por Arievaldo Vianna 
em 12 anos de árdua pesquisa



O NORDESTE E A MPB

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João Pernambuco (violonista)


INFLUÊNCIA DO CANCIONEIRO POPULAR NORDESTINO

NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA



Livro de Almirante "No tempo de Noel Rosa"



ANTECEDENTES FOLCLÓRICOS

Por: Almirante (Henrique Foréis Domingues)

Entusiasmado com as criações do violonista João Pernambuco, Noel Rosa compôs sua primeira obra musical em versos, a embolada “Minha Viola”. Quatro dias antes de morrer, Noel Rosa deixou seu derradeiro manuscrito, a embolada “Chuva de Vento”.

Em 1897, Sílvio Romero lançou seu volume Cantos Populares do Brasil, em 1901, Melo Morais Filho, Festas e Tradições Populares do Brasil, em 1903, Rodrigues de Carvalho, Cancioneiro do Norte, em 1908, Pereira da Costa, Folclore Pernambucano, Alexina de Magalhães Pinto lançou, em 1909, Os Nossos Brinquedos e, em 1911, Cantigas das Crianças e do Povo— valiosos subsídios do Norte e Nordeste. Estando em voga os temas do Nordeste, em 1909, Osório Duque Estrada, autor dos versos do Hino Nacional Brasileiro, publicou o livro O Norte (Impressões de Viagem), um panorama do folclore nordestino.


O escritor, pesquisador e radialista Almirante

João Teixeira Guimarães nasceu a 2 de novembro de 1883, em Jatobá, Pernambuco. Com 12 anos foi para Salinas, em seguida para o Recife. Ainda garoto, nos centros dos cantadores e nas feiras, ouvia e admirava Hugolino do Teixeira, Romano da Mãe D’Água, Inácio da Catingueira, Mané do Riachão e vários outros. Ali recebeu as primeiras instruções violonísticas de Manoel Cabeceira, Cirino de Guajurema, Bem-te-Vi, Madapolão, Serrador, cego Sinfrônio e Fabião das Queimadas.
Em 1902 veio para o Rio e daqui em diante tornou-se conhecido pela alcunha de João Pernambuco. Aqui se fez amigo de Quincas Laranjeiras, Zé Rebelo, Mário Cavaquinho, Sátiro Bilhar, Veloso e tantos outros.
Anos depois conheceu o poeta Catulo da Paixão Cearense, que desde 1900 publicava livros de versos e modinhas e, até 1912, não havia produzido nada absolutamente, em poemas sertanejos, especialmente dos costumes nordestinos. Certa vez, João Pernambuco pôs-se a cantar uma toadinha com os versos populares de sua terra, mas compondo melodia inédita, exclusivamente de sua autoria:

Nega, você me dá (o tiá)
Nega, você não dá não
Nega, se você me dá
E tá na faca, na madeira e no quicé.
Cinco pataca,
Dois tostões,
Mil e quinhento
Minha casa mobiada
Gás aceso e o povo dento...etc.

Catullo, gravura de Pacheco


Catulo nasceu a 8 de outubro de 1863 em São Luís do Maranhão, seguiu para o Ceará e com 17 anos de idade veio para o Rio. Da amizade com João Pernambuco, que lhe exibiu a sua melodia, resultou a criação da primeira canção sertaneja de cunho folclórico.
Entusiasmado com a novidade do coco-de-emboladas (2), Catulo anotou as expressões típicas e saborosas do Nordeste, apontadas pelo violonista. Catulo já não se recordava dos interessantes vocábulos e estranhava o próprio título que João Pernambuco indicara — “Caboca do Caxangá”. Caxangá, o lugar em que tanto vivera...
Sobre a origem dessa famosa cantiga servem como prova definitiva as palavras do poeta, em entrevista do Diário de Notícias de Lisboa, de 30 de janeiro de 1935: “... quando começava a minha obra poética mais importante apareceu-me o João Pernambuco, que vinha do Norte e que, sabe tocar muito bem o violão, me trouxe um vocabulário ainda não pervertido pela língua culta”.
Sem a menor dúvida, Catulo aproveitou os principais elementos melódicos de João Pernambuco para o estribilho citado pelo violonista:

Caboca de Caxangá
Minha caboca vem cá.

E veio, assim, a versalhada repleta de vocábulos colhidos no repertório de João Pernambuco, como Caxangá, Pajeú, Jaboatão, Santo Amaro (lugares e adjacências do Estado de Pernambuco); indaiá, imbiçuru, oiticica, gameleira, taquara (árvores, madeiras do Nordeste); urutau, chorão, jaçanã, quartau, quicé (aves, animais, expressões), usados na nova canção:

Em Pajeú, em Caxangá,
Em Cariri, em Jaboatão,
Eu tenho a fama de cantô
I valentão... etc...

A cantiga despertou interesse no povo, sendo publicada em 1913, no volume Lyra dos Salões(Rio de Janeiro, edição Quaresma, 1913). Como testemunho de gratidão ao seu indiscutível colaborador e parceiro, Catulo imprimiu com esta dedicatória:

“Ao Pernambuco, o insigne violonista’’ (CABOCA DE CAXANGÁ, p. 232)



Lyra dos Salões - Livraria Quaresma (1923)


Era de grande efervescência o movimento artístico daquela época e, em 1914, várias revistas teatrais do ano referiam-se à nova moda musical. Nos três dias do carnaval, animado conjunto, sob o título de Grupo do Caxangá, percorreu os principais pontos da Avenida Rio Branco (3). Seus componentes, orientados por João Pernambuco, usavam máscaras ou grandes barbas, empunhando seus instrumentos e trajando vestimentas típicas, com nomes de guerra nas palas dobradas dos chapéus, conforme foto no O Malho (4) de 28/02/1914: João Pernambuco (Guajurema), Jacob Palmiéri (Zeca Lima), Donga (Zé Vicente), Caninhá (Mané do Riachão), Pixinguinha (Chico Dunga), Henrique Manoel de Souza (Mané Francisco), Manoel da Costa (Zé Porteira), Osmundo Pinto (Inácio da Catingueira). (Ver página 38)
No último dia do carnaval, alguns préstitos exibiam, em carros especiais, letreiros sob o título de “A Embolada do Norte”. Devido ao êxito de “Caboca de Caxangá”, no ano seguinte João Pernambuco apresentou a Catulo outra melodia do mesmo tipo de coco de embolada, a que o poeta pôs letra intitulando-a de “Luar do Sertão”. O poeta editava as músicas, gravava-as em chapas de discos e cantava-as nas festinhas caseiras, nos recitais e palcos, citando somente o seu nome, sem jamais mencionar outros parceiros!
No teatro persistiu o interesse pelos movimentos folclóricos e naquela ocasião representaram-se as peças Ouro Sobre Azul, revista (5) de Maria Lina (Teatro Recreio) (6),  e A Caboca de Caxangá, burleta (7) de Gastão Tojeiro, música de Carlos Rodrigues e Luís Corrêa (Teatro São José (8), 07/12/1915).


Livros de 'MODINHAS' impressos pela Livraria Quaresma

Afonso Arinos, no mesmo ano, realizou um ciclo de conferências sobre temas folclóricos, finalizando-o em 28 de dezembro, com a conferência “Lendas e Tradições Brasileiras”, sob o patrocínio da Sociedade de Cultura Artística, no Teatro Municipal de São Paulo, tendo sido apresentados autos e danças dramáticas e tradicionais. Nas festas eram convidadas as mais ilustres figuras da sociedade paulista e a imprensa informava:

“Para essa parte veio do Rio um grupo de exímios artistas nacionais, reunidos para esse fim pelo senhor João Guimarães, conhecido pelo cognome de Pernambuco, sua terra natal, que ele honra pelo seu talento artístico, exuberante e espontâneo. Foram companheiros de Pernambuco, o grande tocador de viola e de violão, os nossos instrumentos populares por excelência, os senhores Otávio Lessa, Luiz Pinto da Silva e José Alves Lima” (9).

Em dezembro, dia 30, e em janeiro de 1916, o espetáculo repetiu-se e João Pernambuco criou a Trupe Sertaneja, que se exibiu em São Paulo e, em seguida, no Rio e em Porto Alegre.
Crescia o interesse pelas músicas populares de fundo folclórico. Os jornais dedicavam particular atenção aos versos das canções brasileiras, especialmente as sertanejas. No Rio, a 14 de fevereiro de 1916, representava-se a revuette (10), Carnaval no Trianon, de autoria de Fábio Aarão Reis, com músicas de Luiz Moreira e Raul Martins, com Abigail Maia cantando canções folclóricas. No Teatro São Pedro (24 de abril), apresentava-se a revista O Meu Boi Morreu, de Raul Pederneiras e J. Praxedes, com melodias de Pascoal Pereira e Adalberto Carvalho, e o maior sucesso do carnaval do ano, a toada folclórica “O Meu Boi Morreu”.
Dois anos atrás, Abigail Maia, considerada a “atriz da moda”, granjeara o justo título de “a rainha da canção brasileira”, com repertório de modinhas brasileiras e sertanejas como “Chico Mané Nicolau”, “Nhô Djuca”, “Inderê”, “Chora, Chora, Chorado”, “Cambuco e Balaio”, “O Meu Boi Morreu”, “A Rolinha”, “Assim É que É”, “Rolinha do Sertão” e outras. Era ainda relembrado o êxito em Santos, no Rinque Miramar, e depois em várias cidades, do célebre trio Foca - Abigail-Moreira, de José Batista Coelho (João Foca), teatrólogo e humorista; Abigail Maia, atriz e cançonetista, e Luiz Moreira, compositor e maestro.



Catullo foi muito popular no seu tempo

Em 30 de abril desse mesmo ano, os motivos populares do Nordeste deram origem à peça de costumes sertanejos O Marroeiro, original de Catulo da Paixão Cearense e Ignácio Raposo, com músicas do maestro Paulino do Sacramento, incluindo o estribilho de maior sucesso, com diferentes alterações melódicas em seus versos:

Olha a rolinha
Sindô, sindô
Mimosa flor
Sindô, sindô
Presa no laço
Do meu amô.

A respeito das criações das melodias “Caboca de Caxangá” e “Luar do Sertão”, estampamos o depoimento definitivo da carta do saudoso maestro Villa-Lobos (Documento A, ver página 32). E acrescentamos mais declarações que atestam ter sido João Pernambuco o autor das famosas canções, com as assinaturas de José Rebelo da Silva, o Zé Cavaquinho (Documento B, ver página 33), Benjamim de Oliveira e Alcebíades Carreiro (Documento C, ver página 34), o professor Sylvio Salema Garção Ribeiro (Documento D, ver páginas 35 e 36), o musicólogo Mozart de Araújo e a frase do ilustre crítico Andrade Murici, publicada na coluna “Pelo Mundo da Música”, do Jornal do Brasil de 13 de agosto de 1941:
“... Luar do Sertão, letra de Catulo da Paixão Cearense, para a qual esse modesto João Pernambuco compôs música destinada a viver enquanto houver vida num coração de brasileiro”.



João Pernambuco

Declara Mozart de Araújo:

João Pernambuco era homem simples, modesto, de poucas letras. Não tinha ambições de glória e muito menos de fortuna, tanto assim que, apesar do talento excepcional que possuía, morreu pobre. Foi desse homem autêntico e verdadeiro que ouvi a declaração de haver fornecido a Catulo Cearense muitas das suas cantigas trazidas do Norte, entre estas a melodia “É do Humaitá”, que ele cantava ao violão ou à viola.

Catulo, apesar de possuir um bom ouvido, não era um compositor, e também não era um bom musicista, pois o seu violão era rudimentar. Em termos de criação musical, não é possível compará-lo a Pernambuco, cuja obra é das melhores do repertório violonístico do Brasil. Pessoalmente ouvi de Catulo que a melodia “É do Humaitá” foi trazida do Norte por João Pernambuco.
“Modifiquei e fiz o ‘Luar do Sertão’, que foi vendido ao Figner (11)”, declarou-me Catulo, em 1946, poucos meses antes de morrer. Conhecendo Catulo e Pernambuco, entendi que a modificação da melodia consistiu simplesmente em adaptá-la à letra que, esta sim, era de Catulo. Ademais, João Pernambuco nunca se cansou de exaltar o poema de Catulo, que ele considerava um dos mais belos da nossa língua.
Conheço versões folclóricas do coco “É do Humaitá” e nenhuma dessas versões coincide com a melodia que Pernambuco cantava. Não hesito, pois, em afirmar que a melodia fornecida a Catulo era criação própria de João Pernambuco, como eram as toadas “Vancê”, “Tiá de Junqueira”, “Biro-biro-yaiá”, “Siricóia”, “Ajueia Chiquinha” e tantas outras.


NOTAS

1 - Por Catulo nunca tê-lo mencionado como autor da melodia de “Caboca de Caxangá” e “Luar do Sertão”, João Teixeira Guimarães, com profunda mágoa, faleceu a 16 de outubro de 1947.
2. - O coco-de-embolada é um gênero musical muito popular na região nordeste do Brasil, em que dois repentistas travam um desafio musical através de improvisos. A letra é geralmente cômica ou satírica. (N.O.)
3. - A avenida Rio Branco corta o centro da cidade do Rio de Janeiro.Antes chamada de Avenida Central, é uma das principais ruas do centro e foi um marco da reforma urbanística de Pereira Passos no início do século XX. (N.O.)
4. - O Malho foi uma revista brasileira criada em 1902, cuja especialidade era satirizar as notícias políticas da época. (N.O.)
5. - Redução da expressão teatro de revista, que consiste num tipo de espetáculo teatral, composto de números falados, musicais e humorismo. (N.O.)
6. - Surgido ainda no século XIX e inicialmente chamado de Recreio Dramático, esse teatro ficava em frente à Praça da Constituição, no centro do Rio de Janeiro. Foi demolido em 1968. (N.O.)
7. - Tipo de peça teatral cômica, que teve origem na Itália do século XVIII. (N.O.)
8. - O teatro São José localizava-se na praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, e funcionou de 1903 a 1926. (N.O.)
09. - “Lendas e Tradições Brasileiras”, Afonso Arinos. (N.A.)
10. - Tipo de ato teatral surgido no início no século XIX que mistura dança, esquetes e música. (N.O.)
11. - Fred Figner foi dono da Casa Edison, o primeiro estúdio de gravação de disco do Brasil. (N.O.)

Esse texto é o primeiro capítulo do livro NO TEMPO DE NOEL ROSA – Almirante.
Copyright © 1963 Almirante (Henrique Foréis Domingues)

CONTISTAS DO CEARÁ

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EMBOSCADA

Gustavo Barroso

A Mello Morais Filho

Mais tarde, regressava com sua força, ao lado duma moriçaba, quando ao enfrentar uma moita, no lugar Mangabeira, meia légua distante de Lavras, uma bala, partida do mato, o derrubou do cavalo, instantaneamente morto!  (J. Brígido: O Ceará)

                 Apesar dos seus melhores amigos o haverem prevenido com provas cabais que o Inácio de Albuquerque pusera assassinos de tocaia no percurso que tinha que fazer de Umari ao Iguatu, o Estevão de Matos não recuou da resolução que tomara. Ir àquela cidade sertaneja a cavalo, varando o sertão inóspito, representava para ele um compromisso de honra. Havia prometido à firma Ricarte Irmãos saldar as suas dívidas no dia 30 do mês. Os seus negócios de gado em Pedras de Fogo tinham dado lucro suficiente. Possuía o dinheiro necessário ao pagamento das letras que os Ricartes guardavam. Eles lhe haviam emprestado aquelas somas para salvá-lo duma situação aflitiva nos seus negócios. Pusera-os em dia, só lhe restava agora desobrigar-se da promessa. Não haveria forças humanas capazes de o demover. Nem mesmo aceitava o alvitre de mandar pagar por outro. Iria em pessoa, para mostrar à firma que era homem de palavra e para mostrar ao Inácio que não lhe temia os cabras traiçoeiros e a vingança mesquinha.



                A mulher, em lágrimas, rojou-se-lhe aos pés; os filhos pequenos suplicaram-lhe em vão. Marcou o dia da partida. Deu ordens severas para milhar bem o cavalo ruço e preparar um mocó de sustância. Destemeroso, honesto e franco não se arreceava de outro homem. É verdade que dum tiro certeiro de espera ninguém se livrava. Mas ele “sabia onde moravam os mocós”. Era vaqueiro velho, cheio de mocambos, conhecedor de negaças. Andara uns tempos atrás de cangaceiros, guiando destacamentos. Tinha plena confiança em si.

                No dia marcado seguiu viagem. Partiu de manhã, mas não se embrenhou logo nas catingas. Algum esculca o havia de ter espiado e logo corrido a levar a nova aos assalariados das emboscadas. Parou fora da vila, em casa de Matias Florindo, escondeu o ruço na casa de farinha e ali se ficou a parolar com o amigo até a boca da noite. Com o escuro foi embora, levando o animal devagar, a clavina de repetição passada sobre o arção do ginete. Deixou a estrada e meteu-se pelo mato, guiando-se pelas estrelas faiscantes, que avistava por entre a ramaria rala dos paus-brancos. Tinha medo da lua. Nessa noite ela ainda se levantava tarde. Mas ao outro dia nasceria mais cedo e ao outro mais cedo ainda.

                Quando ela clareou o matagal, madrugava já. Distanciou-se mais da estrada que seguia paralelamente, avistando-a, às vezes, por entre os troncos lisos. Num fechado de rompe-gibão, mandacarus e umburanas, onde o pasto verde e suculento cobria o chão, tirou os arreios do cavalo e amarrou-o pelo cabresto a um tronco. Depois, fazendo da carona manta e da sela travesseiro, adormeceu ao pé das árvores.

                O sol nascia.

                Assim viajou mais uma noite e dormiu mais um dia. Na terceira noite de viagem, a lua veio muito cedo. Aquilo contrariava-lhe os planos. Além disso, a catinga naqueles lugares era tão espessa, tão eivada de espinhais, tão acidentado o terreno, de barrocas, pedras e fojos naturais, que só teve um remédio, depois de experimentar o trânsito do mato em várias direções, que foi ganhar a estrada larga e seguir por ela, lento, de ouvido à escuta e olhos à espreita.

                O luar claro escorria pelos troncos alvos e fazia das resinas transparentes lágrimas de luz. Altas, imóveis, as frondes das árvores destacavam-se na claridade do céu. Mães-da-lua gargalhavam ao longe, muito ao longe.

                Os olhos argutos do Estevão notaram que numa gameleira grande, entre dois grossos ramos em forquilha, as folhas eram tão chegadas que por entre elas não se coava o luar. Parou o cavalo e apontou a clavina para aquele escuro da folhagem, na desconfiança instintiva em que vinha de homens atocaiando-o nas moitas e das copas das árvores. O tiro partiu, ecoando nos pedregais. E um vulto de homem tombou mole, lá do alto, a escabujar na estrada branca.

                Do alto de outra árvore mais adiante veio uma voz de homem, dura e cortante no silêncio daquela solidão.

                – Mataste, Chico?



                O Estevão estremeceu. A emboscada era de dois. Que havia de fazer? Se falasse, o salafrário conhecer-lhe-ia a voz e fugiria a prevenir o amo vil da morte do companheiro. Se não falasse, o miserável desconfiaria, havia de tentar espiar o que se passara e iria dar o alarma à chusma acanalhada dos bandidos do Inácio, ou do seu esconderijo talvez o prostrasse com um tiro bem dado. Essa hesitação durou um instante. A sua grande calma ante os perigos salvou-o, ajudada da fertilidade do seu espírito aguçado e todo sutilezas. Soltou um assobio arrastado e discreto, chamando o outro:

                – Fô – fi – i – i – ô – ô – ô…

                Ligeiro, apeou-se do ruço e ficou de pé, de clavina aperrada, no meio do caminho iluminado, ante o corpo do cangaceiro. O outro veio, cauteloso. Ao avistá-lo na claridade do luar, levou a arma à cara. O tiro partiu e o bandido caiu de joelhos, com um grito. Depois tombou de frente no barro, estorceu-se alguns segundos. Aquietou-se por fim.

                Ao seu grito, só o eco respondeu. Nem uma voz soou nas espessuras das moitas ou baixou da ramada das umarizeiras. Pesou um grande silêncio no sertão enluarado. O Estêvão montou o ruço. Acendeu o cachimbo e largou veloz pela estrada em fora…

 (Gustavo Barroso, Praias e Várzeas; Alma Sertaneja, Rio de Janeiro: J. Olympio, 1979, Coleção Dolor Barreira, págs. 60/62)

Fonte: MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.




Gustavo Barroso



Gustavo Dodt Barroso (Fortaleza, 1888 – Rio de Janeiro, 1959) exerceu o jornalismo em sua terra natal, transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1910, onde concluiu o curso de Direito, iniciado em Fortaleza. Voltou ao Ceará como Secretário do Interior e Justiça, em 1914, exercendo depois mandato de deputado federal pelo Ceará. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi dela presidente por duas vezes. Sua vastíssima bibliografia, que chega a quase cem títulos, versa os temas mais diversos. Cultivou a História, a sociologia e o folclore. De contos, publicou: Praias e várzeas (1915), Mula sem cabeça (1922), Livro dos milagres (1924), O Bracelete de safiras (1931).

Sânzio de Azevedo informa que “se trata de um dos maiores vultos do conto realista e regionalista do Ceará”. E acrescenta à lista de suas coleções de histórias O Livro dos Enforcados (1939), sobre o qual diz o seguinte: “tão esquecido de quantos enumeram os contos de Gustavo Barroso, e que, não obstante seja baseado em acontecimentos históricos, retirados da crônica criminal do Ceará, reúne algumas narrativas do mais autêntico sabor ficcional”. Numa análise de várias páginas do ensaio citado linhas atrás, assegura o crítico: “Não é difícil perceber a segurança com que Gustavo Barroso trabalha o conto, não o alongando excessivamente, e demorando-se em descrições apenas o estritamente necessário à pintura do ambiente e à preparação do clímax da fabulação”.  

Otacílio Colares, no ensaio “Gustavo Barroso e o Regionalismo”, introdução à edição de 1979, da Livraria José Olympio Editora, de Praias e Várzeas e Alma Sertaneja, num só volume, reabre a questão: estes escritos são contos ou apenas estórias populares adaptadas? “Num como noutro destes livros daquela prosa que diríamos ser ainda alencarina, pela musicalidade, mas, já em parte, pessoal, pelo cunho de realismo regional, quase – diríamos – tendente ao documental, num como noutro, o leitor preocupado com definições rígidas esbarra com o dilema: são contos o que está em ambos os volumes reunidos, ou apenas o são no que a palavra conto significa invenção e a palavra raconto é entendida como repetição (podendo ser modificada) de velhas narrativas.”

Braga Montenegro vê nele o ponto culminante da narrativa curta no Ceará nos primeiros anos do século XX. Entretanto, vamos nos ater aqui apenas a dois de seus livros de histórias curtas: Praias e Várzeas, de 1915, e Alma Sertaneja, de 1923. Para Otacílio Colares os episódios do primeiro livro seriam “racontos de estórias passadas de pais para filhos.” E acrescenta: “Como se pode facilmente verificar, há todo um contexto informativo a par do conteúdo, vamos dizer, ficcionístico ou literário. E, acima disto, a preocupação de empregar toda uma terminologia regional praiana” (…). Na verdade, o que mais chama a atenção do leitor nestes dois livros de Gustavo Barroso é a estruturação das narrativas nos moldes dos contos populares ou das histórias orais. A manipulação da linguagem erudita e popular se faz tanto no discurso direto como na descrição de ambientes e personagens e na narração propriamente dita. A par disso vem o núcleo básico de cada episódio, sempre envolto em tragédia. Outra característica destes contos é a fiel retratação dos ambientes praianos, varzianos e sertanejos do Ceará. Quanto aos narradores e personagens, verifica-se a presença quase que constante de dois narradores: um narrador-testemunha, que se confunde com o próprio escritor e inicia a estória, e um protagonista-narrador, que conta o episódio principal, quase sempre em diálogo com o primeiro ou instigado por este. Em quase todos os contos o narrador-escritor inicia a narração e, em seguida, a “entrega” ao narrrador-testemunha ou protagonista. Apesar disso, a oralidade sertaneja ou praiana não descamba para a linguagem puramente regional e popular. O escritor conduz a fala do outro narrador, sem prejuízo do uso de vocábulos (substantivos e verbos) e expressões regionais.

Em “Velas Brancas” o protagonista é Matias Jurema, “velho pescador do Meireles”, em Fortaleza. A referência aos objetos de uso em pescaria é minuciosa: samburás, tarrafas, poitas, jangadas, tauaçus, quimangas. O narrador não participa da história, é o próprio escritor. E o conflito do velho pescador com a vida e o mar se faz em silêncio e solidão.

A descrição do ambiente praiano em “Finados” é soberba: coqueiros frondosos, praia branca, jangadas e suas velas abertas, no povoado de Mundaú. E a história remete a uma das crendices do povo da praia: “Quem vai pescar dia de finados sujeita-se a não voltar e morrer de assombração no mar” (…). Lucas, no entanto, quer afrontar a morte e sai ao mar. No dia seguinte “os jangadeiros encontraram restos de uma jangada e no meio deles, espetado em pontas finas de rochas lodentas, o cadáver de Lucas.”

Em “Naufrágio” “o mar tinha uma calma aparente”, um iate navegava com quatro tripulantes. E a história, “vista” do mar, vai adquirindo ares de tragédia. Primeiro “lufadas imprevistas”, depois outra rajada, a neblina, a chuva. “E o iate virava de bordo no espumejar da vaga.” Os ventos se tornam fortes, terríveis, “a crescer numa espantosa velocidade.” Finalmente “houve uma grande pancada”. Dois homens, “cuspidos n’água, debatiam-se em desespero.” O barco “foi-se afundando, afundando.” De manhã “boiavam cadáveres e fragmentos de tábuas ao sabor das ondulações.”

Em “O Pescador”, como em outros contos do livro, há logo no início uma descrição: as ondas, a praia, coqueirais, dunas, rochedos, um farol. Paisagem pintada com exuberância, para que nela os personagens se movimentem. No terceiro parágrafo surge um personagem. Antes dele, porém, mais um pedaço do ambiente: uma choupana pobre. Pedro Jojó se move: “pôs o uru a tiracolo, enrodilhou a tarrafa no braço, segurou ao cinto a quicé afiada e dispôs-se a partir para a pescaria”. Outra crendice do povo da praia: a do “pescador encantado”, mau e governante das águas e dos peixes do rio. Pedro se diz incrédulo, a despeito dos pedidos de sua mulher. Metido nas águas da barra do Pacoti, o pescador vê erguer-se “um vulto que saía das águas.” No dia seguinte pescadores depararam o cadáver de Pedro.

A destoar das narrativas anteriores, “Santa” é narrada na primeira pessoa: testemunha ou o próprio escritor. Além disso, trata-se de episódio do sertão, em tempo de “seca brava”. Otacílio Colares o chama de “narrativa de cunho regional”. O narrador, sem nome explícito, cavalga um cavalo na serra do Pereiro. A paisagem seca é descrita aqui e ali. Uma personagem aparece na segunda página: “uma cabocla forte e esperta”. Em seguida se apresenta o marido dela, “um caboclo ossudo, alto”. Já quase no final da narrativa o segundo personagem se faz narrador para contar a história da santa do título. Dois personagens participam da trama: “o velho Chico de Paula” e sua mulher, a santa. E as duas tramas se cruzam, como se personagens reais passassem a conviver com personagens fictícios. A segunda mulher, a santa, já envelhecida, se mostra no cenário onde se encontram o narrador inicial, a cabocla e seu marido, o narrador do conto da santa.

Outra história de cenário sertanejo é “Espectro”: “A paisagem tinha a tristeza dos ermos” (…). Na paisagem, uma fazenda, a capela senhorial, com seu sino de cobre, a residência feudal do padre Ferreira, “um dos homens mais ricos e poderosos do sertão”, o protagonista. O ponto de vista onisciente conduz o leitor ao passado (ao tempo da escravidão, quando “estralejavam os chicotes dos capatazes”), à vida do personagem, a esbanjar riqueza, em meio à pobreza de seus servos, açoitados por qualquer motivo, até a morte, quando o cavalo em que viajava espantou-se e o levou ao chão. E mais uma vez a crendice: o corpo do padre desapareceu, levado pelo diabo. Na tarde do enterro viram “um negro todo encourado surgir na casa da fazenda”. (…) “Era Satanás em pessoa” (…).

O narrador de “A Luíza do Seleiro” é um viajante do sertão, uma testemunha ou o próprio escritor. O ambiente é o vale do Aracoiaba, nas proximidades das “serras do Baturité e do Acarape”. O narrador descreve a mata verde, as flores selvagens, as árvores, as águas mansas. Na terceira página se mostra o segundo narrador, o da narrativa do título. A personagem é descrita: “olhos rasgados e negros”, “pele macia e aveludada”, “grumos vermelhos dos seus lábios”. Mais adiante se revela outro personagem, Estevão Nunes, “filho de um fazendeiro rico”, estudante na cidade do Forte (Fortaleza). Um dos contos mais longos dos dois livros.

O protagonista de “O Patuá” é Chico de Paula, um saco de pancadas ou “armazém de pancadas”, seu apelido. O episódio transcorre na vila do Riachão, “ribeira sertaneja”. Tudo gira em torno de um patuá, um amuleto que faz do personagem um valentão, capaz de enfrentar cangaceiros.

Um dos contos ambientado em várzea é “Absalão”, nome de personagem bíblico. “A catinga acabava ali” (…) “e para diante várzeas estendiam-se planas”. O protagonista (pode-se dizer assim) é um velho touro chamado Orelhudo. A última refrega do animal com homem é o desfecho: a morte do vaqueiro, em primorosa narração.

História de violência, vingança e morte é “O Filho do Gurari” (gurari é “nome dum pau duro e espinhoso”), cuja ação decorre cem anos atrás, segundo Otacílio Colares, isto é, por volta de 1880. Grupos familiares em luta: de um lado, descendentes diretos de europeus, sobretudo holandeses, os Cavalcantis; de outro, netos de portugueses com índios Paiacus. De uma matança escapa um bebê, que é levado pelo grupo vencedor e criado como filho do chefe. Feito rapaz, é morto a mando do pai adotivo, por medo deste de que o jovem tome ciência da história da chacina.

Tema parecido com este é o de “Emboscada”, cuja ação se desenrola entre Umari e Iguatu. No entanto, o feitiço vira contra o feiticeiro: o emboscado acaba se dando bem, matando os dois homens encarregados de o matarem.

O segundo livro, Alma Sertaneja, tem como subtítulo “contos trágicos e sentimentais do sertão”. Na verdade algumas narrativas do primeiro também se adaptam a este modelo. A maioria das histórias sertanejas segue o mesmo esquema narrativo: um narrador não identificado ou sem nome explícito inicia a narrativa e apresenta o segundo narrador-personagem ou testemunha. Os animais do sertão mais uma vez estão presentes como personagens. É o caso do touro Azulão, de “Marialva Sertanejo”. O heroísmo, a valentia, a coragem do sertanejo, ao lado da miséria, da fome, da seca, são assuntos desses contos. Em “O Come-Gente” Gustavo Barroso atinge o clímax do realismo, com o personagem Luiz Zambeta, “que ficou maluco de fome” e se tornou “estropófogo” (antropófago). Em “O Drama do Guriú” a fome é dos tubarões (história praiana), que devoram toda uma família, à exceção do chefe. “Os infelizes debatiam-se nas águas movediças e os tubarões, virando-se de dorso para baixo, vinham furiosamente, os papos amarelos à mostra, atacar os prisioneiros do oceano.” Em “A Alma do Turco” não há um segundo narrador, mas diversos. Os personagens-narradores se acham numa barranca do rio Quixeramobim. Teodósia conta o último episódio, o do título. O protagonista é um animal, um cachorro grande, o Turco. Tanto o narrador-escritor como a narradora-testemunha fazem questão de dar alma ao animal ou de humanizá-lo. Acusado de furtar queijo e espantar e matar galinhas, o cão é escorraçado de casa diversas vezes. Ao final, se deixa morrer ou morre de tristeza, ao perceber a aproximação do dia em que será levado por um paroara para muito longe, um seringal no rio Xingu, no Amazonas. Em “A Moça da Sapiranga” o primeiro narrador se acha, com outros personagens, ao pé da serra da Tucunduba, após atravessar o rio Ceará. O segundo narrador, Maneco, conta história ocorrida em Orós, a da moça com sapiranga nos olhos. Em “Os Noruegueses do Sabiaguaba” o primeiro narrador se revela um pouco, ao anunciar ao leitor: “E era isso o que a minha curiosidade de escritor ia procurar na casa vetusta do Curió.” A narrativa acontece em Sabiaguaba, “um recanto de praia e bem bonito, por sinal, entre a barra do Rio Cocó e a do Pacoti.” Em “Chifre de Cabra” o narrador-protagonista é João Gameleira, o pajem do narrador-escritor. O episódio se dá na cidade de Quixeramobim. Mulher trai marido, João Gameleira, e é por ele assassinada, juntamente com o outro. Também história de seca é “A louca”, a lembrar “Come-Gente”. Nela o ponto de vista onisciente não deixa entrever um narrador-personagem ou testemunha. O protagonista é Domingos Lopes. Acossado pela seca, vaga pelos sertões. Depara uma casinhola no meio do sertão. Na entrada vê “o cadáver dum cachorro magro”. Dentro da casa, “os corpos apodrecidos de três pequenas crianças”. A seguir, depara a mãe, a louca do título. Na serra de Baturité acontece o episódio de “O Poço das Piranhas”, a lembrar velhas narrativas de horror. Outra história de seca é “Os Filhos do Capitão João Pedro”, ambientada em Fortaleza. Um dos poucos contos em que a capital cearense, ou o seu litoral, é retratada. “Mano Francisco” se inicia com “Sertão inóspito!” É o sertão de Mombaça. O protagonista é Francisco, irmão do narrador-testemunha, “uma coisa medonha”, “um monstro em forma humana”. O tema é a loucura. O homem “ficou doido varrido”, matou um irmão com a mão-de-pilão e “está convencido que virou leão!” O ponto de vista onisciente é retomado em “O Perdão das Trevas”, no qual mais uma vez a seca é tema. Em “O Lobisomem” o contista “engana” o leitor, desde o título e a primeira frase: “Estórias de lobisomens!” Na verdade, se trata de história de um falso lobisomem, o vaqueiro Geraldo, “que tinha fama de homem honesto”, porém mais interessado num pacote de dinheiro do que em sangue humano. A história transcorre em 1899, na ribeira do Banabuiú. A última narrativa, “Como eu Matei a Maçaroca”, também se localiza no sertão, ao tempo dos cangaceiros e de onças, as maçarocas. São diversos pequenos episódios. O narrador onisciente dá voz ao narrador-personagem, o anspeçada Xico Linheiro, o matador da onça.

A matéria-prima dos contos de Praias e Várzeas e Alma Sertaneja é, pois, a natureza em toda a sua pujança e o homem como ser biológico e como ser cultural, este integrado àquela não apenas na paisagem, mas na própria vida (ação), o que faz de Gustavo Barroso um contista (um escritor) pinturesco e, ao mesmo tempo, dramático (drama, conflito) da terra e da gente cearenses.

Fonte: MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

CONTISTAS DO CEARÁ (2)

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Ar do vento, Ave Maria

Conto de Manuel de Oliveira Paiva
  
Edição de base: Obra Completa. Rio de Janeiro: Graphia, 1993.




O AR DO VENTO, AVE MARIA

Ia a lua sumindo-se lívida, por trás de um cabeço onde se abria o roçado. Por entre as palhas do milho, — um mar de cobraria esverdeada, com reflexos de armas brancas em mãos de combatentes revoltos, — fervilhava um sopro álgido que saía roncando de sob a mata cavernosa das cercanias. Pelo meio da roça bracejavam uns gigantes magros, pre­tíssimos, grandes árvores cuja fronde em tempo fora roída pela queima das coivaras. Em um dos cantos, como rico em seu sobrado, estava eu na rede muito aereamente armada nos músculos de uma peroba. Via as árvores salientes como se fossem rochedos, e o cerrado do bosque me fazia horror. Palavra que me arrependia daquela caçada. Porém, tinha uma fé extraordinária no uniforme de couro tanado que me modelava dos pés à cabeça. Me lembrava de que, se visse uma onça, era só enluvar na esquerda o chapeirão e meter-lhe pela boca adentro, enquanto com a destra lhe furasse corajosamente o coração com uma facada. Eu via blocos muito escuros 'no meio da claridade morna que circula no orga­nismo da própria noite.

Verberações de estrelas abrindo os olhos de fera. Me achava meio nada, meio ser. O horizonte não existia a tais horas senão para as pe­netrações luminosas, nascimento ou sepultação de algum astro. Não ha­via perspectiva.

De repente ouvi quebrar mato e estremeci todo. Perguntei a mim mesmo: "Pois veado faz medo assim?"

Entretanto o ruído não procurava o roçado, como faria o cervo, para furtar milho; mas entranhava-se para o meu lado.

Pus-me debruços, com a espingarda por baixo de mim e o dedo no gatilho. Os meus olhos apavorados farejavam a direção da caça. Mas, diabo! veado faz medo assim? No tronco encovado de uma embaúba, cessou o movimento; e em seguida vi perfeitamente um bicho que, se espojando, rosnava, grunhia, relinchava, berrava...

— Fogo! — gritei eu no meu silêncio de horror.

Asneira! Estou em presença mas é de uma visagem!

Por fim o monstro arrancou numa carreira furiosa pelo ventre da fioresta, e então parecia arrastar milheiros de correntes, de latas, de caixões ocos, e relinchava com o estridor anunciante de uma locomotiva.

— Burra sem cabeça! cochichei eu, todo encolhido, os cabelos em pé as mãos entre as pernas apertando o cano da espingarda, o nariz com um arrocho, e os olhos porejando lágrimas de morte.

Entretanto, vi que o bicho tinha deixado uma coisa no chão. O que será? Ele já vai longe, já se não percebe mais a barulheira; desçamos. Desembainhei a faca, prendi-a no dente, e gatinhei pela árvore abaixo. Ah! nesse momento eu sentia todas as delícias do pavor! Entretanto, o laço irresistível da curiosidade me chamava para o pé da embaúba. Então eu me sentia gigante, conquistador, bandido, valente, capaz de brigar com a floresta inteira, quanto com uma burra de padre.

O que o bicho deixara no tronco da embaúba, era justamente uma cabeça de mulher, com o rosto enterrado. Suspendi-a pelos cabelos e ela fez umas caretas horrorosas!... Larguei-a de repente no chão, como quem solta uma brasa e corri. Por acaso voltei o rosto e vi que a face daquela cabeça hedionda tinha ficado para cima. Estava eu, portanto, des­graçado; o bicho, quando viesse, talvez por descuido, engonçaria a ca­beça assim invertida. E me seguirá a pista, porque ele ficará desesperado... visto que as visages devem ter também as suas leis e os seus logros.

Felizmente alcancei a estrada. Como se a massa bipartida da selva fosse adiante de mim se desorganizando, eu ia distinguindo o que é pró­ximo do que é longe. Me parecia ver uma árvore, como uma montanha, debruçada sobre o pálido fio da estrada, e, quando eu me achegava eram muitas árvores separadas, porém, na mesma trajetória.

Havia nuvens baixas, que pareciam nebulosas, e outras escuras, modelando selvas suspensas. O volume absorvia à linha e à superfície. Os insetos vibravam por todos os cantos. Uns soltavam alaridos compas­sados, como pulsações de um coração. Outros um contínuo som brilhante, vivo como estrelas. De quando em vez um sapo coaxava de lá uma voz grossa, notas do peito. E outro assobiava, como pelo canto da boca. Tudo parecia esquisitamente embiocado na pilhéria da escuridão. A mãe-da-lua solfejava as notas inauditas, sobrenaturais, da sua eterna escala descen­dente.

Ao amanhecer, me achei deitado no copiá de uma fazenda, e per­guntei ao primeiro passante que vinha da vila:

— A amásia do vigário teve alguma cousa, amigo?

— Um açulero dos diabos, seu moço! Dizem que ela amanheceu com a cabeça torta!

— Mas você viu-a? Isto é exato?

— A freguesia está toda cheia.

E o vaqueiro da fazenda, que acabava de encilhar o seu cavalo de campo, foi montando e dizendo:

— O que a mulher tem é o ar do vento...

— Ave Maria — concluiu o outro se benzendo.


Manuel de Oliveira Paiva


Escritor brasileiro, Manuel de Oliveira Paiva, nascido a 12 de julho de 1861, em Fortaleza, no Ceará, e falecido a 29 de setembro de 1892, na mesma cidade do Brasil, destacou-se com a obra Dona Guidinha do Poço.
Aos catorze anos, ingressou no Seminário do Crato, que abandonou no ano seguinte por se ter desentendido com o padre reitor. Em 1877, vai para o Rio de Janeiro a fim de estudar na Escola Militar, mas só em 1881 consegue fazer os exames de admissão.
Enquanto aluno desta escola começa a sua atividade literária, tendo ainda fundado a revista A Cruzada, onde publicou o seu folhetim Tal Filha, Tal Esposa. No entanto, dois anos mais tarde, tem de abandonar a Escola Militar por sofrer de tuberculose.
Regressa então ao Ceará onde, enquanto jornalista, luta pelo abolicionismo. Paralelamente, intensifica a produção literária através de contos, crónicas e sonetos.
Em 1889 é publicado em folhetins no jornal Libertador o seu romance de estreia, A Afilhada, e, três anos mais tarde, deixa pronto um novo romance, Dona Guidinha do Poço, que contudo só viria a ser publicado em 1952. Esta obra é considerada um dos mais marcantes romances do naturalismo brasileiro.
A Afilhada foi também editada em livro em 1961.



CONTISTAS DO CEARÁ (3)

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“As Corujas” – Conto de Moreira Campos

Ele conversa muito consigo mesmo, repete-se, os olhos no chão e metido no dólmã de brim listrado, os pés redondos nas alpercatas. Resmunga, insistente. Fecha as janelas do velho necrotério. Apanha os pedaços de lona e, com eles, cobre os mortos sobre a lousa. Deixa-lhes apenas os pés de fora. A mulher sem chinelas, com sangue coagulado entre os dedos abertos; as grandes botas gastas e de cadarços do alemão andarilho, que amanheceu morto no oitão do armazém da praia, onde se alojara: o enorme saco e o livro de impressões, folheado por muitos dedos, foram recolhidos à delegacia. É preciso cobrir os mortos, proteger-lhes as cabeças. As corujas descem pela clarabóia. Têm voo brando, impressentido, num cair de asas leves, como num sopro de morte. De repente, dá-se conta de sua presença, das asas de pluma sem ruído. Alteiam-se e pousam sobre o peito dos mortos, arranhando-lhes os olhos parados, que fulgem na noite, divididos no meio.
– Xô, praga!
Os pedaços de lona ficam dobrados a um canto da sala escura, e ele os puxa sempre, curtos, deixando à mostra os pés inertes. Indispensável fazê-lo; depois fechar a luz triste da lâmpada, que desce pelo fio longo com teias de aranha. O facho da lâmpada de pilhas ainda percorre o teto de travejamento antigo. Crescem e oscilam as sombras: as botas de cadarço do alemão contra a parede – umas botas de muitas viagens. As corujas rasgam mortalha a noite toda na copa das altas árvores do terreno. O facho de luz tenta a densidade das folhas, corre cinzentos telhados, passa pela torre da capela, detém, ao longe, na janela de vidro do nosocômio. Em qualquer parte, na noite, estarão as corujas. Elas rasgam mortalha, agourentas, cortam o silêncio, sacudindo a vigília dos doentes. Recolhem-se, de dia, ao sótão da capela, onde pegam os ratos, que guincham nas suas garras. Necessário subir ao sótão, desfazer-lhes os ninhos. Falará com Irmã Jacinta, diretora do nosocômio, quando ela vier para a ala dos indigentes, ativa, tilintando as chaves no bolso do hábito. Ela mandará que Antero, jardineiro, trepe ao sótão. Ele é moço e divertido. Torcerá o pescoço das corujas, com os cabelos cheios de teia de aranha, e as atirará ao pátio do alto da torre, pilheriando com as enfermeiras. É preciso exterminar as malditas, que rasgam mortalha na noite, enquanto o facho de luz as procura na sombra densa das árvores:
– Xô, praga!
Resmunga, conversa sozinho, repete-se. Torna a experimentar as trancas das janelas, teima em ajeitar os pedaços de lona, que modelam saliências rígidas. O pedaço de lono do alemão ficou curto como uma camisa: têm presença apenas as botas. Resmunga. Se pudesse, ele próprio poria uma teia de arame na clarabóia. Já falou a Dr. Joca, que ele trata por você, porque foram criados juntos, e um xinga o outro. O bisturi do Joca corta sem pressa, profissionalmente. Luvas ensaguentadas, bigode branco amarelecido pelo fumo, ele apanha o cigarro com a boca no cinzeiro sobre o peitoril da janela. Secciona pedaços:
– Leva o balde.
O velho o recolhe, e conversa consigo mesmo, o corpo atarracado mal contido no dólmã de mescla.
Quando o homem que chegou do interior e se hospedou no quarto da pensão veio fazer velório ao corpo descarnado do filho, ele lhe deu a lâmpada de pilhas e o advertiu para as corujas. Elas desciam pela clarabóia, mesmo com a luz da lâmpada. Era preciso manter as velas acesas nos castiçais. Só assim as desgraçadas não vinham: temiam queimar as asas nas chamas. Ficavam rasgando mortalha no alto das velhas árvores ou na torre da capela. Sem a presença das velas, elas surgem sempre, impressentidas, como num sopro de mort: alteiam-se leves, pousam sobre o peito dos mortos e com o bico arranham-lhes os olhos, que fulgem parados e indefesos na noite.



Moreira Campos
O cearense José Maria MOREIRA CAMPOS (Senador Pompeu-CE, 06 de janeiro de 1914 – Fortaleza-CE, 06 de maio de 1994) é considerado um dos melhores contistas brasileiros. Alguns de seus contos estão traduzidos para o inglês, o francês, o italiano, o espanhol e o alemão. Publicou sete livros de contos: Vidas Marginais (1949), Portas Fechadas (1957), As Vozes do Morto (1963), O Puxador de Terço (1969), Os Doze Parafusos (1978), A Grande Mosca no Copo de Leite (1985) e Dizem que os Cães Veem Coisas (1987). E o livro de poesia, Momentos, de 1976.
  http://www.jornaldepoesia.jor.br/mcampos.html#bio

– Este conto faz parte da coletânea Contos Escolhidos de Moreira Campos, edição da Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1971.

Fonte: http://www.c7s.com.br/acade7/leitura-2/as-corujas-conto-de-moreira-campos/

CONTISTAS DO CEARÁ (4)

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Juliana Paes como Gabriela (Remaker)

ALMA BÁRBARA
Herman Lima

A Leão de Vasconcelos

Pois foi assim, meu amo. Nesse tempo, nós andávamos pelo sertão, a serviço do coronel Feitosa, do Icó, por via de uns negócios de política. O Pedro, o patrão deve estar lembrado dele. Negro famanaz, vivedor como trinta, baixo e grosso como um toro de aroeira, com uns beiços revirados, e umas ventas rombudas, como amassadas de murro. Contador de quantos casos de amor e de briga ouvi neste mundo, toda cabocla ele dizia que podia possuir, não achava homem que o fizesse voltar atrás. E, a propósito, deixe contar-lhe.

Uma noite de lua, num forró de casamento, lá na Barreira Preta, no Aracati, quando ainda era, a bem dizer, meninote, o Pedro, encontrando a Ritinha da Venância, uma morena de papoco, falou pra cabeça dela, e foram os dois passear de bote, escondidos, no lagamar confronte. No princípio, o negro ainda se lembrou dos remos, e remou até o meio do rio. O rio estava uma prata. No brejal escuro das margens, berrava a saparia do inverno, assim, zôôôm… Só de longe em longe, um vulto de pescador aparecia, tarrafeando nos baixios. E a cabocla, na proa, olhando o lume do luar tremer nas águas, cantava como uma sereia encantada, dessas que tentam os marinheiros no alto mar. Depois, o negro pegou a se queixar dos braços, descansou os remos atravessados na beirada do barco, e foi sentar-se mais a moça. E tantas coisas fez e achou, meu amo, que quando sentiu foram as pancadas do mar no casco da canoa. Num pulo, deixando a morena quase desmaiada no fundo do bote, o Pedro atirou-se para os remos. Mas, qual. Logo que o barco entrou nas ondas, os remos tinham rolado na água. De forma que o preto botou as mãos na cabeça, assuntando, porque o caso estava mesmo feio. Mirando o céu, ele viu, pelo Cruzeiro grande, que havia de ser meia-noite, pelo menos. Nessa hora, naquelas alturas, só Deus com um gancho lhe podia valer. Assim, não assuntou muito tempo, e tratou de espertar a mulata. Mandou que ela se despisse e fizesse uma trouxa da roupa, que ele amarrou nas costas. E, tomando a pobre nos braços, atirou-se ao mar, nadou até a praia. Como a moça não podia voltar pro baile, por via da distância e das roupas ensopadas de água, o negro achou melhor levá-la pra casa de uma tia, que morava ali perto, no Fortim. No dia seguinte, toda a gente sabia do acontecido. O Pedro mesmo não negou o passeio. E a Ritinha, assim, caiu na boca do mundo. Mas, daí a uns tempos, como a mulata era mesmo um mimozinho deveras, não tardou em acender uma paixão de louco no coração de um cabra fornido, passador de gado nos sertões do Limoeiro, que andava há coisa de três semanas por ali. Quando o Pedro viu o cabra todo derretido pela Ritinha, tratou de ajudar-lhe o xodó, enquanto preparava a pobrezinha, dando de um tudo a ela. Até umas bichas de ouro, em forma de meia lua, ele deu.


Rio Aracati


Mas, aí, como sempre, não faltou um malvado, que foi contar o passeio do rio ao boiadeiro. Mas o cabra, que estava mesmo de beiço pela morena, desprezou a conversa, ainda disse o diabo ao intrigante. Pra encurtar a história, o homem casou sempre com a Ritinha. Pois o Pedro, um dia, meteu na cabeça que devia contar-lhe tudo, e contou.

— E ele?

— Pra lhe falar verdade, meu amo, eu não acreditei muito no que o negro me disse a respeito. Mas ele jurou pela fé em Deus, fazendo cruz na boca, que o outro não fez coisíssima nenhuma. O certo é que uma feita, conversando muito distraído, o preto me falou numa sentença sofrida na cadeia do Aracati; e, num domingo, quando nos banhávamos no açude do João Lopes, na Fortaleza, descobri, lá nele, aqui, embaixo da pá, um risco de faca de dois palmos. Quando lhe mostrei aquilo, o Pedro fechou a cara, disse de mau modo que não era nada, tinha sido uma chifrada de marruá, no tempo dele menino. Deus me perdoe, patrão, mas só me parece que ali andava obra do cabra da Ritinha, e ninguém me tira da ideia que o Pedro tenha feito alguma a ele.

Mas, bom. Como ia dizendo, o caso foi assim. Nós tínhamos chegado no Crato, numa quinta-feira, devendo voltar na outra semana. Quando foi no domingo, como não tivesse serviço, arreamos os cavalos de manhãzinha e nos atiramos no mundo, cada qual no seu rumo. Eu tombei pra venda do Zé Bacurau, onde fiquei até a boca da noite, mais uns freteiros de folga, numa partida de – vinte-e-um, que me limpou os cobres. Na volta, chegando em casa, já com a lua de fora, encontrei o Pedro estirado na tipoia, com uma ponta de mata-rato no queixo. Quando me viu, o preto fez ar de alegria, foi logo dizendo que tinha uma história pra contar. Aí, eu fui coar um gole de café com rapadura, e bebi pelo pires, soprando, danado, pra ouvir o negro. Porque o diabo do homem, patrão, sabia mesmo enrabichar a gente com as falas. Com pouco, eu estava outra vez junto dele, na minha rede, mascando minha felpa de mapinguim. E, metido na tipoia, com um pé no chão pra dar o balanço, o Pedro contou que tinha ido pras bandas do Salgado, chegando num ponto em que foi preciso romper o mato, pra alcançar o rio. A manhã estava bonita, não havia hora melhor para um banho. E já ele tinha desapeado, quando avistou, mais pra cima um pedaço, uma cabocla novinha, nuazinha, trepada numa pedra, mirando-se na água serena que passava. Vendo que a mulatinha não tinha dado por ele, o negro, muito de manso, prendeu o cavalo num buritizeiro, e foi rastejando, rastejando, pelo mato, num piso de sussuarana, até que topou com as roupas da moça escondidas numas moitas. O preto logo assentou um plano. Mais que depressa, agarrou nos vestidos e de repente apareceu à morena. A pobrezinha, como se tivesse visto o Maligno, soltou um grito tamanho, e mergulhou como pecapara assustada. O rio aí já era de nado. Com pouco mais, adiante, ela botou a cabecinha de fora, olhando muito agoniada, sem saber o que fazer. Enquanto o Pedro, muito bem sentado na ribanceira, mostrava-lhe as roupas, rindo para ela, e chamando-lhe quantos nomes de amor sabia. E disse que não tivesse medo, viesse buscar os paninhos, que ele não lhe fazia mal, queria só um beijo dela dado assim nua como estava. Isso ele dizia, meu amo, mas só dos dentes pra fora. Deus me perdoe. Pois alguém acredita que o negro não tivesse má tenção, armando aquele mundéu à coitadinha? No mais, o patrão faça de contas que era ele numa hora dessas, e veja lá se tinha coragem de resistir… Pois a verdade é que a mulatinha pareceu adivinhar os desejos do preto, e desatou a chorar, disposta a morrer, mais antes do que se apresentar despida a ele. Nessa ideia, fez o pelo-sinal, e se soltou no rio. Aí, o Pedro mediu toda a ruindade da ação que estava praticando, e sentiu os olhos cheios de água, com pena e dó da criança. Atirando as roupas no chão, despiu a camisa, e jogou-se na correnteza. A moça, nesse tempo, já ia longe, enrolada nos cabelos, arrastada pelo rio. O negro mergulhou, e nadando por baixo da água, como um peixe, foi tomar fôlego já nos calcanhares da cabocla. Com duas braçadas mais, emparelhou com ela, e, agarrando-a pela cintura, nadou com força pra terra, como tinha feito com a outra, lá no Aracati.

Garanto, meu amo, que o negro, me contando isso, ficava ainda com os olhos afogados de pranto, como quem atravessa a fumaça de um incêndio… Coisas do coração, moço, mas não é? Pois, quando vinha trazendo a moça pro seco, apertando contra o peito aquele corpinho novo, macio e cheiroso, que nem uma fruta do mato, o preto me disse que só sentia uma bondade tão grande, uma pena tão esquisita, como se fosse Nossa Senhora que ele tivesse salvado das águas. Acredite se quiser, meu patrão, mas o negro botou a caboclinha na beira do rio, com o mesmo amor de uma mãe, deitando o filhinho na rede. Quando viu que ele não lhe fazia maldade, a mulata descruzou os braços que escondiam o peito tentador, e num jeito de onça enrolou-se toda nas roupas. Aí, o Pedro enfiou a camisa, e foi-s’embora, sem mesmo olhar pra trás.

No fim da semana, estávamos de viagem. Tínhamos deixado o Crato de madrugada, no segundo canto do galo. Os cavalos eram bons, bralhadores famosos, de forma que às onze horas tínhamos tirado oito léguas. Aí, fizemos uma parada, pro almoço, na sombra de uma oiticica verde, que ficava mesmo cobrindo a picada. Os animais ali por perto babujavam o capinzinho da vereda. Acabando de comer meu bocado de paçoca e rapadura, fiz da carona travesseiro, e me deitei no chão, disposto a dormir um minutozinho. A mata, nessa hora, estava quieta, que nem capela vazia. Só se ouvia o chio-chio de uma cigarra cantadeira nas folhas e um ou outro sopro de venta dos cavalos cansados, roendo a erva. Ainda me lembro que estava dorme-não-dorme, quando o Pedro, que também tinha acabado de almoçar, levantou-se bocejando e se afastou pela estrada. Não sei dizer se tive tempo de dormir um cochilo, quando de repente um berro medonho encheu todo o mato. Num instante, me vi de pé, correndo como um doido, no rastro do negro, que fui achar pouco adiante, agarrado com um cabra moço e entroncado, como um mourão. Pelos modos, meu camarada tinha sido atacado de surpresa, nem teve tempo de se defender. E, antes de sair de meu assombro, o curiboca recuou num pulo, com os olhos relampeando, como uma onça acuada, e uma faca que era isto, encarnada de sangue, no punho. O Pedro se bambeou, com as mãos na barriga, como quem sofria uma grande dor. Aí, acudi com meu punhal desembainhado, e avistei uma coisa, patrão, que me tirou o sono muitas noites. O negro tinha levado uma estocada no vão do umbigo, que era mesmo uma barbaridade, as tripas tinham espocado, pois assim mesmo, quase de cócoras, procurando aguentar os bofes que escorriam para o chão, o preto arrancou a garrucha do quarto, e – ah! negro bom mesmo na hora! – levou um pé adiante, fazendo mira no assassino. Quando viu a arma alumiando, o cabra atirou-se pra cima dele, batendo o queixo que nem caititu furioso, mas já o tiro tinha estrondado por aquele sertão a fora. Aí, o homem deu um salto para o ar, como cabrito assustado, e caiu de bruços na estrada, sem bulir. Vendo-o derrubado, corri para o Pedro, que também tinha rolado na areia. Tomei a cabeça dele nas mãos, quis ver se ainda o levantava. Mas o pobre pegou a revirar os olhos, gemendo como doente de “puxado” no inverno. Só teve tempo de chegar a boca no meu ouvido, e disse, apontando o outro: – “É o irmão daquela diaba!”. – A cabeça pendeu pra trás, o corpo amoleceu nos meus braços. Estava morto, meu patrão!

Por causa disto, tive de andar no mato, fugido como cangaceiro, dois anos e tanto. Hoje, ninguém fala mais no caso, posso estar por aqui, sem medo. Mas, pra acabar a história direito, voltando uma vez no Crato, todo barbado e diferente, pra não me conhecerem, soube que o assassino do Pedro era um irmão da mulatinha do rio. Um comboieiro tinha encontrado os dois corpos na estrada, galopou como um doido até a cidade, e tudo se descobriu.

— Já vê, meu amo, que não serviu de nada a boa ação do preto, não tocando num cabelo da morena. Se ele tivesse feito mal a ela, talvez que nem a descarada contasse o caso aos parentes. Como o pobre a tratou como uma santa do altar, achou bom vingar-se.

  Mulheres?!… Pode crer, patrão. Uma tira pelas outras. E é tudo uma pouca vergonha.

 (Herman Lima, Tigipió, 7ª ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1976)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Herman de Castro Lima - (Fortaleza11 de maio de 1897 — Rio de Janeiro21 de julho de 1981) foi um contistamemorialista e crítico de arte brasileiro.


Seu pai, Antônio da Silva Lima, era de família sertaneja da região do Aracati; e sua mãe, Julieta Demarteau de Castro Lima, belga. Inicialmente, trabalhou como auxiliar de fotógrafo e, posteriormente, como feitor da rodovia em construção, que ligava o porto de Aracati aos sertões do Jaguaribe. De volta a Fortaleza, foi funcionário da Delegacia Fiscal. Neste posto, em 1922, transferiu-se para Salvador, onde diplomou-se em medicina e seguiu para clinicar no distrito diamantino de Lençóis, interior da Bahia. De suas experiências em Lençóis, escreveu Garimpos (1930), coletânea de contos, que posteriormente foi traduzida para o espanhol por Benjamin Garay.[1]
Em seguida, rumou para o Rio de Janeiro, então capital federal. Ali, foi auxiliar da Presidência da República entre 1933 e 1937, assumindo logo em seguida a Delegacia do Tesouro Brasileiro em Londres.[1] De volta ao Rio, em 1940, dedicou-se com afinco ao estudo da caricatura no Brasil, da qual já era meticuloso colecionador desde tenra idade. Dessa pesquisa resultou uma obra em quatro volumes que é até hoje uma referência-chave no assunto.[2] Foi um dos principais biógrafos de Cândido Aragonez de Faria.[3]
Lima traduziu vários autores, predominantemente do francês e do inglês. Também publicou livros de memória que, em geral, evocam seus tempos de juventude no Ceará e são marcados por um profundo senso de paisagem, nostalgia, aspectos etnológicos e certo pendor para a anedota.
Na literatura, começou a publicar artigos e charges na imprensa de Fortaleza sob o incentivo de Gustavo Barroso, ao final da década de 1910. Entre suas obras mais conhecidas, figuram Tigipió (1924), contos, seu livro de estréia, que mereceu menção honrosa da Academia Brasileira de Letras e teve o conto título adaptado para o cinema em 1986;[4]Variações Sobre o Conto (1952), crítica literária; Imagens do Ceará (1958) e Poeira do Tempo (1967), memórias; e História da Caricatura no Brasil (em 4 vols.), história e crítica de arte.
FONTE: Wikipedia

CONTISTAS DO CEARÁ (5)

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SECA

Rachel de Queiróz

Era hora do almoço dos trabalhadores. Enquanto os homens comiam lá dentro, o fazendeiro velho sentava-se na rede do alpendre, à frente de casa espiando o sol no céu, que tinia como vidro; procurando desviar os olhos da água do açude, lá além, que dentro de mais um mês estaria virada de lama. Os dois cabras se aproximaram sem que ele pressentisse. Era um alto e um baixo; o baixo grosso e escuro, vestido numa camisa de algodãozinho encardido. O alto era alourado e não se podia dizer que estivesse vestido de coisa nenhuma, porque era farrapo só. O grosso na mão trazia um couro de cabra, ainda pingando sangue, esfolado que fora fazia pouco. E nem tirou o caco de chapéu da cabeça, nem salvou ao menos. O velho até se assustou e bruscamente se pôs a cavalo na rede, a escutar a voz grossa e áspera, tal e qual quem falava:

– Cidadão, vim lhe vender este couro de bode.

Aquele “cidadão”, assim desabrido, já dizia tudo. Ninguém chega de boa atenção em terreno alheio sem dar bom-dia. E tratando o dono da casa de cidadão. Assim, o fazendeiro achou melhor fingir que não ouvira e foi-se pondo de pé.

– O quê? Que é que você quer?

O homem escuro botou o couro em cima do parapeito e o sangue escorreu num fio pelo cal da parede:

– Estou arranchado com minha família debaixo daquele juazeiro grande, ali. Essa cabra passou perto – não sei de quem era. Matei, e a mulher está cozinhando a carne para comer. Agora, o couro – o senhor ou me dá dinheiro por ele, ou me dá farinha.

– E de quem é essa cabra? É minha? Quem lhe deu ordem para matar?

O velho estava tão furioso que o dedo dele, espetado no ar, tremia. E o loureba esfarrapado chegou perto e deu a sua risadinha:

– Ninguém perguntou a ela o nome do dono…

Mas o outro, sempre sério, olhou o velho na cara:

– Matei com ordem da fome. O senhor quer ordem melhor?

Nesse meio, os homens que almoçavam lá dentro escutaram as vozes alteradas e vieram ver o que havia. Eram uns doze – foram aparecendo pelo oitão da casa, de um em um, e se abriram em redor dos estranhos no terreiro. Aí o velho se vendo garantido, começou a gritar:

– Na minha terra só eu dou ordem! Vocês são muito é atrevidos – me matarem o bicho e ainda me trazerem o couro pra vender, por desaforo! Chico Luís, veja aí de quem é o sinal dessa criação.

O feitor largou a foice no chão, puxou as orelhas do couro, e virou-se achando graça para um dos companheiros:

– Era a sua cabrinha, não era mesmo, compadre Augusto? Está aqui o sinal…

O Augusto veio olhar também e ficou danado:

– Seus perversos, a cabra era da minha menina beber leite, estava de cabrito novo!



Mas o olho do homem escuro era feio, se ele se assustara vendo-se cercado pelos cabras da fazenda, não deu parecença. O loureba é que virava a cara de um lado para outro, procurando saída; ainda levou a mão ao quadril, tateou o cabo da faca – mas cada um dos homens tinha uma foice, um terçado, um ferro na mão . Nesse pé o fazendeiro, para acabar com a história, resolveu mostrar bom coração; e gritou para o corredor:

– Menina! Manda aí uma cuia com um bocado de farinha!

Depois, retornando ao homem:

– Eu podia mandar prender vocês, para aprenderem a não matar bicho alheio! Mas têm crianças, não é? Tenho pena das crianças. Leve essa farinha, comam e tratem de ir embora. Daqui a uma hora quero o pé de juazeiro limpo e vocês na estrada. Podem ir!

O homem recebeu a cuia, não disse nada, saiu sem olhar para trás. O outro acompanhou, meio temeroso, tirou ainda o chapéu em despedida, e pegou no passo do companheiro. O velho reclamava, em voz alta – cabra desgraçado, além de fazer o malfeito, recebe o favor e nem sequer abana o rabo. Os trabalhadores, calados, acompanhavam com os olhos os dois estranhos que marcavam um atrás do outro, na direção do juazeiro, do qual só se avistava a copa alta ali no terreiro.

Ninguém sabe o que pensavam; o dono da cabra deu de mão no couro e foi com ele para trás da casa. Aí a sineta bateu e os homens saíram para o serviço. Passando pelo juazeiro, lá viram a família ao redor do fogo, os meninos procurando pescar pedaços da carne que fervia numa lata. Mas o homem escuro, encostado ao tronco, via-os passar, de braços cruzados, sem baixar os olhos. Ainda foi o dono da cabra que baixou os seus; explicou depois que não gostava de briga.

MORALIDADE:
Este caso aconteceu mesmo. Faz mais de trinta anos escrevi uma história de cabra morta por retirante, mas era diferente. Então, o homem sentia dor de consciência, e até se humilhou quando o dono do bicho morto o chamou de ladrão. Agora não é mais assim. Agora eles sabem que a fome dá um direito que passa por cima de qualquer direito dos outros. A moralidade da história é mesmo esta: tudo mudou, mudou muito.

Fonte:
QUEIROZ, Rachel de. Cenas brasileiras São Paulo: Ática, 1997.


ALMANAQUES POPULARES

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Almanaque O JUÍZO DO ANO (Coleção Arievaldo Vianna)

AS PROFECIAS DE MANOEL CABOCLO

Por Eliézer Rodrigues (jornalista)

Em dias tão turbulentos e apreensivos e sem imaginação, nada criativos, pelos quais estamos vivendo, como faz falta o almanaque “O Juízo do Ano”, publicação de Manoel Caboclo, editada, em Juazeiro do Norte. Caboclo pressagiava, também, muitas revoltas, crimes misteriosos, assaltos e vinganças terríveis. Tudo em versos de cordel.

Semelhantes ao formato dos folhetos de cordel, distribuídos em todo Nordeste com tiragem que chegava a 40 mil exemplares, entre 1959 e 1996, os almanaques eram disputadíssimos, principalmente pela criatividade na abordagem dos temas.

Além das indicações meteorológicas, tendo o sertanejo nordestino como alvo predileto, a publicação trazia conselhos favoráveis ao cultivo, além de previsões astrológicas, parapsicologia, numerologia e até ciências ocultas.

Tive a felicidade de entrevistá-lo (Jornal Diário do Nordeste/ edição 20/12/1992), em sua residência, em Juazeiro do Norte, pouco anos antes dele falecer, em 1996. Após a sua morte, o almanaque “O Juízo do Ano”, já em crise, deixou de circular.


Foto: Manoel Caboclo editava o almanaque, na sua gráfica, instalada na casa dele.



Os ALMANAQUES POPULARES e a LITERATURA DE CORDEL

MANOEL CABOCLO E SILVA foi também um conhecido poeta e editor de CORDEL. Essa ligação da Literatura de Cordel com os almanaques é muito antiga… Na primeira metade do século passado já circulava em todo o Nordeste o famoso ALMANAQUE DE PERNAMBUCO, do poeta e editor João Ferreira de Lima (foto), que era um verdadeiro livro de cabeceira dos matutos de outrora. Basicamente eram informações sobre a quadra invernosa, os melhores dias para o plantio, receitas caseiras, plantas medicinais, astrologia, tábua das marés e curiosidades. A matriz parece ter sido o famoso LUNÁRIO PERPÉTUO que, segundo Câmara Cascudo, era uma das leituras prediletas do povo nordestino no século XIX, exercendo grande influência sobre os cantadores e poetas populares que exerciam o ofício de “cantar Ciência”, modalidade muito apreciada nos primórdios da cantoria.

João Ferreira de Lima foi sócio de Manoel Caboclo, durante a década de 1960. Caboclo era colaborador e distribuidor do Almanaque de Pernambuco no Ceará. Depois disso, Manoel Caboclo resolveu criar o seu próprio almanaque, batizado O JUÍZO DO ANO, que circulou até a década de 1990.

No seu rastro surgiram outros almanaques similares, escritos e editados por poetas populares, como é o caso de Costa Leite, Vicente Vitorino de Melo e Manoel Caboclo e Silva. Destes, o único que ainda se encontra em atividade é Costa Leite, editando seu vetusto almanaque pela Editora Coqueiro. (A.V.)

POEMA MALICIOSO DE BILAC

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MEDICINA

 Olavo Bilac

Rita Rosa, camponesa,
Tendo no dedo um tumor,
Foi consultar com tristeza
Padre Jacinto Prior.

O Padre, com gravidade
De um verdadeiro doutor,
Diz: “A sua enfermidade
Tem um remédio: o calor...

Traga o dedo sempre quente...
Sempre com muito calor...
E há-de ver que, finalmente,
Rebentará o tumor!”

Passa um dia. Volta a Rita,
Bela e cheia de rubor...
E, na alegria que a agita,
Cai aos pés do confessor:

“ - Meu padre! estou tão contente!...
Que grande coisa o calor!
Pus o dedo em lugar quente...
E rebentou o tumor...”

E o padre: “É feliz, menina!
Eu também tenho um tumor...
Tão grande, que me alucina,
Que me alucina de dor...

“ - Ó padre! mostre o dedo,
(Diz a Rita) por favor!
Mostre! porque há-de ter medo
De lhe aplicar o calor?

Deixe ver! eu sou tão quente!....
Que dedo grande! que horror!
Ai! padre... vá... lentamente...
Vá gozando... do calor...

Parabéns... padre Jacinto!
Eu... logo... vi... que o calor...
Parabéns, padre... Já sinto
Que rebentou o tumor...”

(In Contos para velhos, BOB - Pseudônimo de Olavo Bilac)

JOÃO BRÍGIDO DOS SANTOS

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UM PALADINO DA IMPRENSA CEARENSE




João Brígido dos Santos (1829 – 1921), jornalista, cronista, historiador e político, nasceu no dia 3 de dezembro de 1829 na Vila de São João da Barra, na época pertencente a Província do Espírito Santo, depois Estado do Rio. Sua família migrou em 1831 com destino ao Ceará onde estabeleceu- se na cidade de Icó. João Brígido tomou suas primeiras aulas em Quixeramobim, quando conheceu o garoto Antônio Vicente Mendes Maciel, futuro líder messiânico trucidado por forças do Governo Federal nos confins da Bahia no triste episódio de Canudos. Consta que um dia, João Brígido salvou o petiz Antônio Vicente de um afogamento num rio em Quixeramobim.
Em 1855 João Brígido funda na cidade de Crato o jornal “ O Araripe “ dando início a uma longa trajetória triunfante na Imprensa do Ceará. Na época, com o pseudônimo de “ KKK “ colaborava com outros jornais cearenses, incluindo um de propriedade do temível Padre Verdeixa, apodado, imaginem, de “ Canoa Doida “.
Em 1861 João Brígido foi nomeado Professor de Português no afamado Colégio Liceu do Ceará e em 1903 funda o Jornal O Unitário, trincheira onde terçava armas com adversários reais ou imaginários feito um Quixote matuto. Foi Deputado Provincial (1864- 1867), Deputado Geral (1878 – 1881), Senador do Estado (1892), Deputado Estadual (1893 – 1894).
Publicou “ Apontamentos para a História do Cariri “ (1888) ,” Miscelânea Histórica” ( 1889 ) , “ O Ceará – lado cômico” (1899) e “ Ceará – homens e fatos “ ( 1919 ) , sua mais destacada obra.

UM BURRO DISCURSANDO

Do seu quartel – general, o combativo jornal” O Unitário” partiram rumo a história pérolas como estas:
“ Ontem, às treze horas os admiradores de G. Falcão prestaram-lhe uma homenagem numa refeição no Café Riche. À sobremesa, em nome dos presentes, falou o C.L. Em seguida, o homenageado ergueu- se nas patas traseiras, firmou-se nas dianteiras, murchou as orelhas e gaguejou um discurso, curto e ruim “.

 João Brígido , certa feita ,espinafrava um pobre chefete político sertanejo em seu pasquim: “ – Fulano de tal, há muito devia estar na cadeia pelos monstruosos crimes que impunemente tem cometido à sombra de governos que se sucedem “. Aparece então, Miguel Xavier um bem informado correligionário afirmando que o tal fulano acabara de aderir ao partido de João Brígido. O velho jornalista apenas corrigiu: “ – Não corte nada e ponha tudo entre aspas. E em seguida, sem aspas:  - Que ele devia estar na cadeia, por ser criminoso, dizem os seus inimigos peçonhentos. Nós, porém, que o temos na justa conta, consideramo-lo um dos homens de bem entre quantos que ainda vivem no sertão.

No governo do Comendador Nogueira Acioli, o Jornal O Unitário assim comentou uma tertúlia palaciana: “ Estiveram ontem, à noitinha em palácio, com Acioli, o Coronel Paulino, de Quixeramobim, e mais nove criaturas de idade avançada. Eram dez os visitantes. Mas ... quem os visse, contava quinze olhos e onze dentes “.

O FERREIRO DA MALDIÇÃO



Encerrando, seguem trechos de uma crônica do Jornal O Unitário com a data de 20 de maio de 1903, com a marca registrada de João Brígido: “ O Ferreiro da Maldição “:

“ O Ceará é o ferreiro maldito, de quem fala a lenda popular: quando tem ferro falta carvão. É nadador contra a corrente, que nunca chega; o caranguejo que anda e desanda; o eco a repetir a pregunta sem lhe dar resposta; o nó sem ponta; o sonho que promete em sombras que não se distinguem bem, a vaga esperança, enfim, para a qual nunca chega o dia.
Há cem anos um povo gigante, a mover-se, não adianta um passo, como frágil esquife sobre as ondas, que a corrente impele, e o vento faz recuar. Não lhe falta a alma. São os deuses, que o condenam à pena de Tântalo – morrer de sede à beira do regato. Os diretores mentais do Ceará morreram ou foram longe procurar um teatro para exibição de sua intelectualidade; e crestam na penúria os rebentos da capacidade cearense, a disputarem um pouco de ar, que aliás lhe mata o estímulo; o ar mefítico das baixas regiões oficiais...
Que seja para os netos de nossos netos, não importa. O mundo não é tão curto, que acabe em nós; e cem anos, na ordem dos tempos, é muito menos de um til nos lábios“.

Esta crônica foi publicada n’O Unitário, edição de 20.05.1903.

Fonte: http://astrilhasdavida.blogspot.com/2016/01/joao-brigido-paladino-da-imprensa-do.html


* * *

O Quixeramobim do cronista 
João Brígido


João Brígido dos Santos foi indiscutivelmente um intelectual múltiplo, destacando-se como: político, advogado, cronista, jornalista e historiador. Segundo o poeta Jáder de Carvalho, um de seus maiores admiradores, João Brígido foi antes de tudo um grande contador de histórias.
Tendo nascido a 3 de dezembro de 1829, em São João da Barra, então da província do Espírito Santo, faleceu a 14 de outubro de 1921, em Fortaleza.  Chegou menino ao Ceará, e residiu em Quixeramobim parte significativa de sua infância, onde aprendeu latim, no velho sistema dos jesuítas.
Foi contemporâneo e amigo de Antônio Conselheiro, moraram na mesma rua, e segundo relatou em texto memorialístico, junto de outros amigos, os dois quase morriam afogados, pois certo dia fugiram de casa para “tomar banho num furo, que a enchente do rio tinha cavado numa das suas margens”. Então, quando estavam mergulhando, um tal Cândido Sabóia lançou sobre eles uma tarrafa por diversão e “com o peso das chumbadas” afundaram.  Brígido conseguiu voltar à tona com Conselheiro agarrado ao pescoço dele e assim salvaram-se.  
“Meio anfíbio, nadador afoito e jogador de cambapé, eu vivia nos rios cheios e nos poços”, era assim que o jovem João Brígido definia-se nesse tempo.
Anos mais tarde já consolidado no jornalismo cearense e na condição de arguto observador, destacou João Brígido, naCrônica de Quixeramobim uma curiosidade histórica sobre o mais antigo templo religioso da cidade: “A matriz de Quixeramobim, hermeticamente fechada e com assoalhos laterais, tornou-se, no correr dos anos, uma igreja mal-assombrada. É que ali se fazia a inumação dos cadáveres da freguesia, como de costume em todo Ceará”.
 Por fim, é importante destacar que o escritor também se debruçou sobre a trágica e sangrenta luta entre Os Maciéis e os Araújos, a famosa guerra entre famílias que abalou o sertão do Ceará no começo do século XIX. E assim sendo, sabe-se que João Brigido foi uma referência certa para Euclides da Cunha escrever anos depois sobre esse episódio no clássico Os Sertões.

Bruno Paulino é escritor.


Fonte: https://alpendresertao.blogspot.com/

Klévisson Vianna nas PAGINAS AZUIS

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"Minha arte sempre estará a serviço dos mais fracos"

| TRAJETÓRIA | Artista multilinguagens, o cearense Klévisson Viana relembra momentos de sua carreira e reafirma seu compromisso com a arte como canal de transformação social


Foto: Alex Gomes

"O artista nunca tá satisfeito". Assim resume Klévisson Viana quando perguntado acerca de seu metiê. Caçula de cinco irmãos, sendo todos crescidos na zona rural de Quixeramobim, o menino - de rebelde na escola a falador que só a mulher da cobra, como diz o ditado - sempre soube qual seria seu destino: "Pra quem acredita em reencarnação, não tem outra explicação. Sempre quis ser desenhista", não titubeia em dizer. O ano de 2018 serviu de mote para que o cearense celebrasse três décadas de trajetória, que lhe renderam popularidade, respeito e inúmeros prêmios.
Aos 46 anos de idade "com carinha de 30", Klévisson já perdeu a conta de quantos livros vendeu. "Mas já passou de um milhão", garante. Em entrevista ao O POVO, numa tarde do início de dezembro, concedida em sua casa - que também serve de lojinha - na Parquelândia, o escritor, quadrinista, editor, cordelista e, acima de tudo, "um contador de histórias", trouxe à tona seus primeiros rabiscos, a mudança definitiva para a capital cearense, sua Tupynanquim Editora, mas também uma certa apreensão em relação ao futuro, sobretudo da cultura.

OP - O menino Klévisson, lá em Quixeramobim, era uma exceção entre os demais por conta desse interesse pelos livros, desenhos, etc?

Klévisson Viana - Esse menino tinha uma característica: lá em casa, a gente não dispunha de material de desenho; essas coisas eram muito escassas. A gente tinha algum material dos meus irmãos - eu era o caçula de cinco. Então uma das características desse menino era ficar desenhando com o dedo. Ficava contornando as pessoas por horas ou então me deitava e ficava contornando as coisas no céu; se eu via uma paisagem, ficava sempre contornando com os dedos. Era uma coisa que, mesmo antes de eu me entender por gente, eu já queria fazer isso. Pra quem acredita em reencarnação, não tem outra explicação. Sempre quis ser desenhista. Agora o lance da poesia sempre esteve presente na minha vida porque o meu pai (Evaldo Lima, 78 anos) é agricultor e poeta. Chegava do roçado e lia literatura de cordel e declamava verso pra gente. Ele é uma enciclopédia da poesia popular, tem muito conhecimento! Nunca publicou nada, mas sempre foi uma pessoa que gostou de escrever e tem a mania de receber as pessoas sempre com estrofe. E isso é uma herança porque o avô dele, Fitico, já tinha esse costume. Então essa coisa da poesia veio do meu pai. Mas o desenho, não. Meu irmão mais velho, Ari (Arievaldo Vianna), veio muito cedo morar em Maracanaú pra estudar, mas nós não tínhamos quase contato. Então a gente desenvolveu esse gosto morando em lugares distintos. E foi uma surpresa! Uma vez ele veio de férias e chegou lá em casa com uma revista em quadrinhos do Pernalonga, e eu não sabia o que era uma história em quadrinhos. Eu conhecia alguns personagens da Disney porque, nos anos 1970, circularam os personagens numas tampinhas de refrigerante - se eu não me engano, era Pepsi, Teem e Guaraná Wilson. Televisão, a gente não sabia nem o que era! Ele chegou lá com uma história em quadrinhos e eu me apropriei e não deixei mais ele levar embora. Mas o que mais me fascinava, em se tratando de desenho, era um primo que meu pai tinha chamado Zé Miguel, que era vaqueiro, e a casa dele era aquela casa sertaneja, cheia de alpendres, mas era cheia de desenhos as paredes! Ele desenhava aquelas cenas dele do cotidiano, da lida com o gado e tal, e ele reproduzia. E todo dia, não sei por qual razão, eu fiquei indo durante algum tempo, e o que me motivava de ir à casa dele era olhar pra esses desenhos.

OP - Foi em Canindé que você completou os estudos?

Klévisson - Em Canindé, eu fui matriculado no Colégio Frei Policarpo, que ficava mais próximo da minha casa. Aí eu tinha uma dificuldade tremenda de ficar na escola. Era que nem aquela música do Raul Seixas: "Ao chegar do interior/ Inocente, puro e besta..." (risos) É porque eu era matuto demais, era selvagem demais! Então minha mãe tinha que ir e ficar me pastorando porque eu chorava... Mas isso foi só nos primeiros meses, depois eu fui me ambientando. Mas lá eu fiz até o Fundamental.

OP - Hoje em dia, o Klévisson é muita coisa: cordelista, ilustrador, quadrinista, editor, etc. Como você gosta de ser chamado? Melhor, como você gostaria de ser lembrado?

Klévisson - Como um contador de histórias. Porque eu acho que tudo que você faz que lida com a Comunicação é contação de histórias. Quando você vem aqui pra conversar comigo e quer saber da minha vida, você está querendo saber pra contar a minha história. Quando eu assisto a um filme, é uma história que está sendo contada. O objetivo da maioria das músicas é contar uma história e por aí vai.


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