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OS CONTOS DO POLICARPO

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O mestre Raimundo Policarpo, personagem real, sertanejo de fibra, detentor de saberes ancestrais, quase não tem nada em comum com seu homônimo Policarpo Quaresma, personagem fictício de Lima Barreto, ao qual o autor emprestou um triste fim, tão amargo quanto o seu próprio. Sabedor de rezas, meizinhas e outras crendices avoengas, o Policarpo real revela-se, acima de tudo, um exímio contador de histórias, causos que ouvia da boca de seus antepassados e que se revelam pitorescos e latentes, através do vivo colorido de sua fala mansa e cordata.
Policarpo é meu sogro e escutar a sua prosa é um dos motivos que me levam a visitar o sertão com frequência. Amante da poesia sabe de cor dezenas de folhetos de Cordel, tendo na lista dos seus favoritos O príncipe João Sem-Medo na Ilha dos Diamantes e A princesa irmã da cobra e o reino de Mar Tufão, de Francisco Sales Arêda e Lucas Evangelista, respectivamente. Vem decorando, desde menino, estrofes de cantorias que testemunhou e às vezes mostra-se capaz de criar glosas de sua própria lavra, usando como viola (imaginária) um cacete de jucá ou mesmo um simplório cabo de vassoura. A toada onomatopaica vez modulada pelo “tum-tum-tum-tum-tum” recurso que se vale desde a infância, por não haver aprendido a tocar um instrumento de verdade.
Eu costumo deleitar-me com a sua palestra, movido não apenas pela curiosidade de pesquisador e folclorista, mas, sobretudo, pelo prazer de ouvi-lo, sendo que raras vezes anoto alguma coisa ou ligo o gravador. É de seu feitio contar essas histórias depois da boca da noite, como todos os velhos contadores de histórias de Trancoso que acreditam (ou fingem acreditar) naquele velho dito popular: “quem conta histórias de dia, cria rabo de cotia”.


Policarpo e seu netinho João Miguel

Dia desses o Policarpo contou-me a história do “João Pequenino” que nada mais é que o compadre pobre do folheto O cavalo que defecava dinheiro, de Leandro Gomes de Barros, enredo que ficou largamente conhecido ao ser inserido na peça “O auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, onde o dito cavalo aparece metamorfoseado em felino. A versão apresentada pelo Policarpo mantém basicamente todos os elementos do folheto, com pequenas variações no decorrer da narrativa.
Nessa visita mais recente, recolhi duas narrativas maravilhosas que até hoje não encontrei similares nos livros de Câmara Cascudo e Sílvio Romero. Pode até ser que existam relatos paralelos, mas confesso de antemão que não os conheço, o que fez enxergar um toque de originalidade nas histórias do velho Policarpo. Vamos a elas, procurando manter a leveza e originalidade de sua prosódia:


Casa de taipa – ilustração de Klévisson Vianna
  
O TÍSICO E A CASCAVEL

“Em vez da cobra comer ele,
Ele é que comeu a cobra”
(A cobra sucuri – Teixeirinha)

Diz que um homem descobriu que estava enfraquecido e os parentes trataram logo de levá-lo a um médico em busca de remédio para sua moléstia. Mas naquele tempo não havia cura para tuberculose e o medico aconselhou aos parentes construir um quartinho no meio da mata, para isolar o doente a fim de evitar o contágio. Ave Maria! Ninguém podia beber numa vasilha usada pelo tísico. Pratos e talheres eram separados. Todo mundo morria de medo de pegar a doença. Então a família não viu outro jeito. Seguiram o conselho do doutor e foram construir um casebre no meio do mato, uma casinha de taipa, onde armaram a rede do enfraquecido. De mobília havia somente uma trempe para cozinhar o feijão, um jirau do lado de fora, onde botavam alguma comida e um pote d’água. O homem padecia de uma febre terrível e às vezes nem tinha coragem de se levantar.  E o pior de tudo é que esse sujeito tinha muito medo de cobras e vivia rezando para São Bento, para que o livrasse da picada de uma delas. Sabendo disso, uma comadre piedosa lhe mandou uma medalhinha do santo milagroso, para que usasse no pescoço.
O tempo foi passando... Certo dia, já muito doente e cada vez mais magro, o pobre homem viu aproximar-se de sua choupana uma cobra cascavel de grossura desmedida, com vários anéis na ponta da cauda. A cobra aproximou-se do casebre, enrodilhou-se no pote e mergulhou a cabeça no recipiente onde bebeu por vários minutos, até ficar totalmente saciada. Depois que matou a sede a cobra foi-se embora sem fazer mal ao doente e o homem ficou lá, na rede, morto de sede, sem querer beber da água sobejada pela cobra. Mas quando a sede apertou mesmo, não teve outro jeito. Meteu o caneco de flandres no pote e bebeu da mesma água. Dois dias depois a cobra veio novamente e agiu exatamente como da primeira vez. Bebeu e foi embora, sem fazer mal ao doente.
O tempo foi passando e depois de duas semanas o homem percebeu que a cobra estava afinando. Nos primeiros dias era roliça, de uma grossura espantosa. Porém aos poucos foi afinando, afinando... Enquanto isso o doente melhorava a cada dia. Sentia-se disposto, corado, as febres foram cessando e ele até já levantava para caçar, mas não se apresentava em casa porque o médico proibira-o de retornar ao convívio da família. Depois de uns dois meses o homem já se sentia completamente curado e a cobra, coitada, estava cada vez mais fina, da grossura de um dedo mindinho, arrastando-se com dificuldades, mas sempre procurando o pote para matar a sede.  Até que deixou de vir e o homem concluiu que ela havia morrido enfraquecida, enquanto ele estava bom de saúde. Foi aí que criou coragem e procurou o médico que nem o reconheceu. O doutor ficou impressionado com a sua cura e depois de ouvir o seu relato concluiu que a sua doença passara para a cobra.



AS COLUNAS DO OFÍCIO
Os sertanejos atribuem ao Ofício da Imaculada Conceição um poder ilimitado, sobretudo para aqueles que o rezam com fé e devoção. Essa oração é dividida em várias estrofes rimadas, que os sertanejos chamam de “coluna”. Sobre essa antiga crença sertaneja, o Policarpo contou-me o seguinte:
Havia antigamente, por esses sertões, dois compadres, um rico e um pobre, ambos trabalhadores. O rico que era muito ambicioso vivia de olho numa vazante que o pobre possuía, onde vingavam as melhores frutas e verduras. Mandioca, batata e jerimum havia ali com fartura. Já o terreno do rico, vinte vezes maior, não produzia daquele tanto, nem tinha a mesma qualidade, o que instigou a inveja e a cobiça. Mas o pobre fez finca-pé e não queria vender o seu pedaço de chão por nada desse mundo. Foi aí que o compadre rico desgostou-se de vez e entendeu de mandar matá-lo. Chamou um negro de sua confiança e ordenou que desse um jeito de matar o compadre, sem que ninguém soubesse a causa de sua morte.
O negro saiu de noitinha, com um bacamarte carregado até a boca e foi na residência do compadre pobre, esperando que ele saísse no terreiro para alvejá-lo. Mas nesse dia parece que o pobre foi se deitar mais cedo, pois não apareceu no alpendre. O sujeito viu uma lamparina acesa na sala do casebre e se aproximou sorrateiramente, para espreitar por uma brecha da janela. Acontece que quando ele olhou pelo buraco, tremeu dos pés a cabeça. O pobre estava pendurado numa corda, no meio da sala, com meio palmo de língua de fora. O cabra deu meia volta e foi dizer ao compadre rico que não precisava mais se preocupar com seu vizinho, que havia encontrado morto, pendurado numa corda.
No outro dia bem cedo o compadre rico e o seu capataz foram tirar o leite das vacas e viram o compadre pobre passar todo feliz, com a enxada nas costas, em busca do seu roçado. O rico ficou furioso e disse ao negro:
¾ Como ousaste me enganar? Você disse que o compadre havia se suicidado e no entanto eis o homem, feliz e satisfeito, marchando para o roçado!
O crioulo, que era muito supersticioso, benzeu-se meio sem jeito e protestou:
¾ Mas eu juro que vi o homem pendurado numa corda. Não é possível que tenha escapado. Mas deixe estar... De noite eu vou lá novamente e faço o serviço, dessa vez ele não escapa!
O rico ficou mais conformado e passaram o resto do dia sem tocar no assunto, para não dá na vista dos curiosos. Assim que anoiteceu o negro pegou o bacamarte e foi novamente tocaiar o compadre pobre. Quando olhou pela brecha da janela o homem estava lá, partido em duas bandas e pendurado pelos pés. Não havia dúvidas... A luz do candeeiro iluminava a face do cadáver, que pendia de uma das bandas do corpo. O negro voltou correndo e foi dar a notícia ao seu patrão, que se deu por satisfeito e foi dormir.
No outro dia, quando iam para o curral tirar o leite, viram o compadre pobre passar novamente, lépido e fagueiro, assobiando uma cantiga e levando uma foice nas costas. O rico quase endoida de raiva e ameaçou o negro com um chiqueirador:
¾ Agora fiquei sabendo que você é mesmo um covarde. Um imprestável. Como é que me conta uma história daquelas e agora o homem passa são em salvo em busca da vazante?
O negro gaguejava sem encontrar uma explicação para o fato e comprometeu-se a ir novamente, na noite seguinte, armado até os dentes para cumprir o que havia prometido.
Mas, quando a noite caiu, a coisa foi pior. Quando olhou pela brecha da janela, o crioulo quase morre do coração. O homem estava esquartejado, retalhado em quatro postas e a cabeça estava espetada num torno da parede, com uma expressão horrível. O crioulo meteu dos pés e chegou em casa apavorado, dizendo ao seu senhor:
¾É preciso que o senhor vá comigo e veja com seus próprios olhos. O homem está lá, esquartejado. É preciso que o senhor veja, para não duvidar mais da minha palavra.
O homem um tanto aborrecido vestiu uma capa e acompanhou o negro estrada afora, até que chegou no casebre do compadre pobre, onde uma fraca luz de lamparina vazava pelas brechas da janela. O rico ficou estarrecido com o que viu. O compadre estava realmente partido em quatro pedaços e a cabeça jazia espetada num torno da parede, do jeito que o negro havia lhe informado. Voltaram calados, impressionados com a cena que haviam presenciado.
No outro dia levantaram mais cedo que de costume e foram para o curral, para ver o que iria acontecer. Como das outras vezes, o compadre pobre passou novamente, bom de saúde, rumo ao seu roçado. O rico deixou o negro tirando o leite das vacas e o acompanhou a fim de tirar a história a limpo...
¾ Compadre, me diga uma coisa... O Compadre sabe de alguma mandinga, de alguma reza forte?
¾ Sei nada, compadre. A única reza que aprendi em toda a minha vida foi uma coluna do Ofício da Imaculada Conceição, que escutava a minha avó rezar nos tempos de menino. Nada mais!

O rico ficou muito admirado e bateu-lhe um grande arrependimento. Chorando ele pediu perdão ao compadre, explicando tudo o que sucedera e prometendo não mais persegui-lo, daquele dia em diante. Dizem que o compadre rico aprendeu o Ofício de Nossa Senhora e tornou-se um cristão praticante e virtuoso.

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